As dietas veganas são deficientes em proteína?
Apesar deste ser um dos maiores mitos existentes sobre alimentação vegana, essa afirmação é infundada e sem sustento científico.
Uma alimentação estritamente vegetariana (que equivale a uma “dieta vegana”) consegue atingir as necessidades proteicas sem qualquer dificuldade, desde que a dieta seja adequada do ponto de vista energético e variada.(1) Alguma dificuldade em atingir as necessidades proteicas, virá por consequência do mau planeamento e erros alimentares e não pelo tipo de dieta.
Embora se possa observar em alguns estudos que a população vegetariana ingere menos proteína que quem consome carne e peixe regularmente, isso não significa que a ingestão é insuficiente, sendo por vezes até maior do que a necessária e, portanto, sem risco de desnutrição proteica.
E isto é válido para a população no geral e para praticantes recreativos de desporto ou até mesmo atletas de alta competição. Portanto, não há nenhuma justificativa científica para considerar que uma alimentação estritamente vegetariana é deficiente em proteínas. (2,3,8)
Do ponto de vista económico e da sustentabilidade global, tem surgido um interesse crescente no estudo e uso das proteínas de origem vegetal, e isso trouxe uma visão atualizada sobre a qualidade das proteínas vegetais, mostrando que não são inferiores quando se trata de saúde ou performance desportiva. (4,5)
Qualidade das proteínas
A preocupação no passado com a desadequação da alimentação estritamente vegetariana do ponto de vista proteico vem da ideia que as proteínas vegetais eram de baixo valor biológico e deficientes em alguns aminoácidos (que são as moléculas que formam as proteínas). Essa designação há muito que deixou de ser usada, por ser considerada desadequada, e passou a usar-se uma forma de avaliação das proteínas (DIAAS – recomendado pela FAO) (6) que tem em conta dois critérios: o perfil de aminoácidos e a sua digestibilidade.
– O perfil de aminoácidos – significa ter um nível adequado de todos os aminoácidos essenciais. Aminoácidos essenciais são aqueles que o nosso corpo não consegue produzir e são obtidos pela alimentação).
A maioria das proteínas vegetais, com algumas exceções, como a soja, tem algum aminoácido essencial em menor quantidade, considerado em quantidade insuficiente. Mas isto não significa que esteja ausente.
– A sua digestibilidade – as proteínas vegetais têm menor digestibilidade, devido a factores relacionados com a estrutura protetora das paredes celulares das plantas e que dificultam o acesso das enzimas, para a sua digestão;
Deste ponto de vista, as proteínas de origem vegetal apresentam menor “qualidade” do que as de origem animal, e isso dá a falsa ideia de que as vegetais não são boas ou suficientes para a saúde humana.
A verdade é que todos os alimentos vegetais contêm os 20 aminoácidos usados no nosso corpo, incluindo os 9 essenciais. (7) Por este motivo, em vez de se afirmar que faltam aminoácidos às proteínas vegetais, será mais adequado dizer que, para os humanos, o perfil de distribuição de aminoácidos das proteínas vegetais é menos ideal do que o de proteínas de origem animal. Não deixando por isso de ser suficientes.
Sabemos que as leguminosas têm uma proporção menor do que é ideal para as necessidades humanas do aminoácido metionina, enquanto que no caso dos cereais, do aminoácido lisina, mas isso só seria importante se nos alimentássemos em exclusivo de arroz ou feijão, o que não acontece.(7)
É muito fácil contornar esta questão de alguns alimentos terem menores quantidades de algum aminoácido essencial, pois basta para isso fazer uma alimentação que inclua uma variedade de diversas fontes proteicas vegetais (ex. leguminosas como o feijão, cereais, sementes, oleaginosas). (3,8)
Em boa verdade, a ingestão de aminoácidos na alimentação vegana ultrapassa com facilidade a necessidade do nosso corpo, quando bem planeada e variada, de modo a somar os aminoácidos na sua quantidade necessária. Também a popular recomendação de se juntar na mesma refeição diferentes fontes proteicas (arroz e feijão, por exemplo) já não é considerada necessária. (3,8) O importante é o aporte total ao longo do dia.
Necessidades proteicas – quanto mais melhor?
A proteína tem inúmeras funções no nosso corpo, como a manutenção da saúde óssea, da massa muscular, da pele, na produção de enzimas, sendo fundamental à saúde humana. As evidências atuais afirmam que atletas têm maior necessidade proteica. Essa maior necessidade serve para suportar a adaptação metabólica, a reparação e remodelação da massa muscular nos atletas. (4,9)
No caso da população sedentária, em geral, é recomendado que consuma 0,8g a 1g por quilograma de peso corporal, por dia. Isto embora esta recomendação tenha vindo a ser contestada como insuficiente e valores de cerca de 1,2g/ kg/ dia sejam considerados por algumas entidades e especialistas como mais adequados, principalmente para os idosos, devido ao risco de perda de massa magra.
Segundo a Academia de Nutrição e Dietética (Academy of Nutrition and Dietetics), a Dietistas do Canadá (Dietitians of Canada) e o Colégio Americano de Nutrição Desportiva (American College of Sports Nutrition) (10), a recomendação para consumo de proteínas pelos atletas ou pessoas que se exercitam regularmente varia geralmente entre 1,2g a 2g por quilograma de peso corporal, por dia. Esta recomendação é similar à da International Society of Sports Nutrition (1,4 a 2g/kg/dia) (9,11).
E com estas novas evidências, parece surgir uma tendência de que quanto mais proteína melhor. No entanto, quando falamos de síntese muscular, quanto mais melhor pode não ser a melhor solução. Existe um limite para o que é direcionado para a síntese de músculo a cada consumo proteico. Valores acima de 3g/kg/dia no geral, parecem não trazer vantagem, de acordo com a evidência científica. (11) Um consumo na ordem de 0,25-0,4 g de proteína por kg de peso corporal por refeição será o valor limite para a capacidade de síntese muscular. (7,11) O que, para alguém com 70Kg, representa entre 17,5 e 28g de proteína por refeição. É mais útil que o valor total das necessidades proteicas seja distribuído ao longo do dia, por diversas refeições.
Consigo construir músculo numa dieta vegana?
A coisa mais importante a fazer para construir músculo é a musculação.
A proteína apenas servirá como substrato para a regeneração desse músculo, que se traduz no seu aumento ou na sua preservação, conforme o estímulo.
Nos últimos anos têm surgido cada vez mais evidências de que as fontes de proteínas vegetais oferecem capacidade de síntese de proteínas musculares, facilitam a recuperação após o exercício e sustentam o aumento de força e hipertrofia muscular. (8)
Uma alimentação estritamente vegetariana bem planeada e personalizada de acordo com as características individuais do atleta e do tipo de exercício assegura as necessidades proteicas, e fornece condições para um bom desempenho em desportos de alto rendimento e competição. (2)
Não há assim qualquer evidência científica contra a adoção de uma dieta vegana no desporto. (3,8,12)
As recomendações nutricionais e de estratégia do planeamento da alimentação de atletas veganos são exatamente as mesmas que para os atletas que consomem carne e peixe. (2)
Na sua posição oficial sobre exercício e proteína, a International Society of Sports Nutrition (ISSN), para além do que já foi mencionado sobre as necessidades diárias, refere que qualquer atleta saudável (vegano ou não) deve praticar uma dieta equilibrada e densa em nutrientes. Também sugere que, embora seja possível obter as quantidades de proteína através de uma dieta variada, pode usar-se suplementação de proteínas ou aminoácidos específicos, como forma prática de garantir as necessidades e melhorar o desempenho. E acrescenta que não existe superioridade de um tipo de proteína sobre outra, em termos de optimização e recuperação muscular. (4)
Quando são avaliados os efeitos no desempenho ou aumento da massa muscular de proteínas de um tipo específico, por exemplo, comparando a proteína de soja vs proteína do soro do leite, as proteínas de origem animal parecem ter um melhor resultado. (4)
Esse efeito parece estar relacionado com a presença em maior quantidade do aminoácido leucina. Este é o aminoácido mais importante quando falamos de síntese de proteínas musculares. Mas essa diferença deixa de se verificar quando é aumentada ligeiramente a quantidade de proteína de origem vegetal, e se iguala a quantidade de leucina, verificando-se aumentos semelhantes na composição corporal. (5)
Para além das proteínas
Nem só de proteína se faz o músculo: outros elementos como o ferro, a vitamina B12, o cálcio ou o zinco são muito importantes na formação do tecido muscular e na performance. Estes nutrientes podem representar um risco de deficiência, se não se der a devida atenção no planeamento da dieta. (1,3,10)
As doses diárias recomendadas de vitamina B12 e D podem ser alcançadas com o cuidado de incluir alimentos fortificados. Se houver dificuldade em alcançar as necessidades devem ser suplementadas, após avaliação dos seus valores no sangue, de forma a ajustar a dosagem do suplemento. (3)
No caso do ferro, cálcio e zinco, as necessidades podem ser suprimidas na dieta vegana com a devida organização do plano alimentar, assegurando as quantidades e aplicando estratégias de otimização da absorção desses minerais. (3)
A alimentação vegana tem demonstrado inúmeros efeitos favoráveis à saúde, muito associados ao alto consumo de frutas, vegetais e cereais integrais. Os veganos apresentam frequentemente níveis mais elevados de elementos antioxidantes, como a vitamina C, E e betacarotenos, o que pode ser benéfico no exercício pela sua capacidade em reduzir o stress oxidativo induzido pelo exercício. (1,8,12,13)
Que não sobrem dúvidas de que uma alimentação estritamente vegetariana não é deficiente em proteínas, deve sim ser variada em fontes proteicas.
E que com uma gestão estratégica do plano alimentar, uma dieta vegana nutritiva pode ser projetada para satisfazer as necessidades alimentares de atletas, pensando em performance e saúde. É no entanto fundamental que, no caso do atleta vegano, que haja uma preocupação de programar o seu plano alimentar de forma adequada, por forma a garantir a sua saúde.
Artigo da autoria da nutricionista Cláudia Maranhoto (Membro Efetivo da Ordem dos Nutricionistas com o Nº1386D)
Referências:
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