O dicionário de língua portuguesa define a empatia como “a ação de se colocar no lugar do outro, procurando agir ou pensar da mesma forma como ele pensaria ou agiria nas mesmas circunstâncias”. Todos, enquanto seres humanos, nascemos com a capacidade de sentir empatia, tal como nascemos com a capacidade de falar italiano ou de correr uma maratona. No entanto, tal como as outras aptidões de que somos capazes, a empatia precisa de ser incutida em nós e treinada ao longo do nosso processo de educação e socialização. Pensemos em nós próprios: sentimos empatia, por exemplo, por alguns animais. Não os comeríamos porque pensamos no sofrimento que isso lhes causaria. O que aconteceu então no nosso processo de educação para sentirmos empatia por alguns animais e não por outros?
Comecemos pelo início: imaginemos um bebé. – Tal como vimos, nasce com todas as capacidades, prontas a serem desenvolvidas –. Nos primeiros 4 a 6 meses de vida, o bebé passa por uma das mais importantes fases da sua vida: a amamentação: um magnífico processo de conexão entre mãe e filho, não só pelos laços que são criados, mas também pelo maravilhoso alimento que é o leite materno, tão importante para a formação física do bebé. Tal como nos diz a Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP) “a partir dos 6 meses de idade torna-se progressivamente mais difícil para os lactentes atingirem as suas necessidades nutricionais através do aleitamento materno exclusivo, nomeadamente em energia, proteínas, ferro, zinco e algumas vitaminas lipossolúveis (A e D)”, sendo a partir daqui recomendada a diversificação alimentar.
Continuar a amamentação paralelamente ao resto da comida ou pará-la por aqui é opção de cada mamã. Mas já que estamos a falar de empatia, vale a pena falarmos da empatia da lactante também: não é incomum durante a amamentação a mãe olhar para o seu bebé, no conforto e segurança do seu peito, e fazer a conexão com os vitelos, que logo nos primeiros dias de vida são retirados às suas mães para que os humanos possam beber o seu leite – afinal de contas, a vaca é apenas mais um mamífero como todos os outros, que apenas produz leite após o parto.
Já em relação ao bebé, este está agora a descobrir comidas com novos sabores, texturas e temperaturas. A SPP diz-nos também que “a introdução dos diferentes alimentos não pode ser rígida e deve ter em consideração uma série de fatores de ordem social e cultural, tais como costumes de cada região, questões socioeconómicas, temperamento da criança, disponibilidade do agregado familiar e ainda particularidades do lactente”. Ou seja, não há propriamente uma lista de quais alimentos devem ser introduzidos primeiro que outros, até porque há vários factores a ter em conta e que são diferentes de bebé para bebé.
Geralmente, começa-se por introduzir alimentos com textura parecida ao leite materno: sopas, papas, etc. E então, algures nesta “degustação” de novos sabores (a SPP refere o segundo e terceiro trimestre), são introduzidos a carne, o peixe, ovos e leite não-materno. A SPP refere este consumo como importante pelo seu valor nutricional, mas refere também os seus perigos quando consumidos em demasia; por outro lado, diz-nos também que é possível obter os mesmos nutrientes com alternativas vegetais
Agora a pergunta: porquê a introdução da carne de frango, pato, porco, vaca, coelho, e não a introdução de carne de cão e gato? É claro que se olharmos para outros países do mundo, podemos fazer a pergunta ao contrário. Mas o cerne da questão continua o mesmo: porque o consumo de alguns animais e não de outros?
“É cultural”: decerto já ouvimos este argumento muitas vezes. De facto. Mas como é que a cultura determina que tipo de animais comemos e que tipo de animais amamos?
Vejamos o nosso caso, na cultura do ocidente (claro está que há diferenças no consumo de país para país, mas podemos dizer que escolhemos consumir mais ou menos os mesmos animais). A cultura influencia as crianças sobre que nível de empatia devem sentir por cada animal através, por exemplo, de livros e filmes. Nos filmes Pets, A Dama e o Vagabundo, Dumbo, Garfield vemos a personificação de um grupo de animais. No filme Dumbo vemos um elefante bebé ser retirado da sua mãe, e sentimos uma profunda compaixão ao ver esta cena – quem não chorou ao ver o Dumbo em criança? Outro exemplo clássico é O Rei Leão: quem não chorou ao ver Simba perder o pai e depois fugir sozinho, desprotegido enquanto criança?
Sentimos empatia pelo pequeno Simba, tal como se ele fosse uma criança humana, desprotegida na rua. Vemos estes animais fazerem coisas que nós fazemos: chorarem a perda de membros da família, jantarem e apaixonarem-se, etc. Entendemos os sentimentos destes animais, sentimentos tão iguais aos nossos. Como nos revemos neles, seria impensável comê-los, porque sabemos que sofrimento lhe estaríamos a causar.
Agora voltemos a’O Rei Leão: aqui vemos a linda e improvável amizade de um suricata e um javali. Este filme humaniza todos os personagens importantes, dando-lhes, entre outras características humanas, um nome. Lembramo-nos do Mufasa, da Nala, do Scar… E como se chamam os animais que o Pumba e o Timon comem? Não lhes é dado um nome nem história, eles não são importantes – e assim é normalizado o ato de os matar e comer.
Claro que a escolha em comer uns animais e amar outros vem de muito antes da existência destes filmes. Não podemos propriamente pôr a culpa neles. A verdade é que a cultura, nas suas várias formas, é um espelho da sociedade, os seus hábitos e formas de pensar. Daí estes filmes darem importância a uns animais em detrimento de outros. Na cultura oriental, porventura, existem filmes e livros protagonizados pelos animais que nós consideramos como “não comestíveis”. Os filmes e livros apenas refletem aquilo que já vem sendo praticado e está enraizado em cada cultura. Se olharmos por exemplo para as redes sociais, não é incomum vermos no nosso feed fotografias que não conseguimos ver a não ser que cliquemos em “revelar foto”, depois de consentirmos que sabemos que a fotografia contém cenas que podem ferir os mais sensíveis. Depois de clicarmos, vemos cenas da matança do porco ou outros animais. E porquê? Porque é que, se de livre vontade comemos esses animais (e sabemos que eles tiveram que ser mortos), essas fotografias são classificadas como potencialmente ofensivas? Porque ao vermo-las sentiremos empatia, entenderemos o sofrimento do animal e teremos compaixão; sentiremos a tal empatia que a nossa cultura e sociedade envolvente nos vem treinando a não sentir.
Podemos dizer que todos nós nascemos vegetarianos. Quero com isto dizer que, enquanto bebés lactentes, a nossa alimentação não implica o sofrimento de nenhum outro ser senciente. (Infelizmente, por vezes a amamentação pode infligir sofrimento às mães, e por esse ou outros motivos, existem alternativas, que podem também ser vegetais). Como vimos, a partir deste período, as escolhas alimentares são feitas pelos cuidadores tendo em conta vários factores, como a sociedade em que se está inserido. Mas façamos um exercício (mental) comumente feito pela ciência para determinar qual a nossa escolha natural enquanto humanos: imaginemos um bebé/criança, que ainda não esteve exposto à socialização cultural, sozinho numa sala com um pintainho e uma maçã. Qual das “coisas” ele irá comer e com qual irá brincar?
Porém, à medida que as crianças vão crescendo, é-lhes incutido o ensinamento de que precisam de ultrapassar esta compaixão pelos animais que consumimos de modo a se tornarem adultos. É-lhes desenvolvida a empatia por alguns animais, e retirada a empatia por outros.
Em jeito de conclusão, deixo este pensamento: porquê? Porque é que devemos perder uma das qualidades que nos torna humanos?
A autora escreve segundo a antiga ortografia.