O transporte de animais vivos para consumo humano é um tema pouco conhecido, mas é uma realidade no nosso país. De Portugal para o mundo saem todas as semanas milhares de animais, entre ovinos, bovinos e outras espécies. Os principais destinos são países do Médio Oriente e do Norte de África que, à chegada destes animais, serão os responsáveis pelo seu encaminhamento para matadouros e posterior comercialização das carnes. Para além da evidente questão ética que se levanta perante o fim destes animais, estamos a falar de deslocações por via marítima de longa e dura distância.
O bem-estar dos animais durante as viagens – que se estendem durante vários dias, dependendo do destino – é uma incógnita, já que o trajeto não é acompanhado por nenhum veterinário a bordo, nem qualquer entidade legal que verifique as condições do transporte. Os relatos das associações de proteção animal, e dos órgãos de comunicação social, são as únicas formas de sabermos o estado dos animais antes de embarcar e no momento do desembarque. O cenário é, na maior parte das vezes, assustador.
Em Portugal, cabe à Direção-Geral da Alimentação e Veterinária a gestão das exportações de animais vivos. A Associação Vegetariana Portuguesa (AVP) falou com esta entidade para perceber os números desta realidade em Portugal. Só nos primeiros nove meses de 2022, a DGAV já tinha dado luz verde à saída de 56 navios gado (como são conhecidas estas embarcações) dos portos portugueses. Isto representa quase 500 mil animais transportados vivos para abate em países estrangeiros, mais concretamente, 469 848 animais (ovinos e bovinos). No total, em 2022, saíram 74 viagens marítimas de transporte de animais vivos, mais 6 que em 2021, ano no qual foram carregados 68 navios, o que sugere que o “negócio” está em crescimento.
Confrontando os dados da DGAV com os da associação israelita da Plataforma Anti-Transporte de Animais Vivos (PATAV), encontramos uma ligeira diferença. Nos primeiros 9 meses de 2022, o número de animais que chegou a Israel é de 479 346 animais, somando bovinos e ovinos.
A emissão de certificados para estas embarcações que efetuam os transportes, bem como a receção dos registos das empresas que se dedicam a tal, são algumas das tarefas da DGAV. Através de um documento disponível online é possível ficar a conhecer as regras definidas, que incluem os requisitos de identificação, os requisitos de saúde animal e ainda os procedimentos e requisitos de bem-estar animal durante o transporte.
Entre as regras estabelecidas dentro da União Europeia, está a necessidade de ser feita quarentena, que se pode prolongar até 35 dias antes do embarque. A ideia é que os animais sejam “mantidos isolados e em observação, sem contacto direto ou indireto com outros animais que tenham a mesma probabilidade de exposição ao agente ou doença” e “sob controlo da DGAV”, lê-se no documento. Durante este período, os animais são sujeitos a um conjunto de testes, como a prova de diagnóstico da tuberculose e/ou brucelose, entre outros. A viagem ainda não começou e estes seres sencientes já contam com semanas de isolamento e desconforto constante provocado pelos exames exigidos.
Também antes do embarque, os navios gado são sujeitos a uma vistoria. É com base nessa visita presencial ao navio que são atribuídos os certificados para validar o transporte. A certificação destes veículos exige, na verdade, um conjunto de critérios rigorosos. Entre eles, uma cópia dos relatórios do comandante, “na qual se incluam os detalhes da mortalidade” das últimas cinco viagens feitas. O perfil da tripulação também é exigido, para perceber se têm experiência no manuseamento e cuidados a prestar aos animais.
Outra exigência é a monitorização e registo de aspetos como o controlo ambiental (temperatura e humidade), a alimentação e o abeberamento dos animais (para se perceber a frequência com que comem e se hidratam, por exemplo), o maneio das camas e, finalmente, o conjunto de medidas a adotar em caso de doença, traumatismo ou mesmo morte de um animal.
Rentabilização de espaço ou sobrelotação?
Para teres uma ideia, os maiores navios transportam entre 25 mil a 30 mil animais a bordo, sendo que este número se pode estender até 40 mil “cabeças de gado” (como são designados), se considerarmos os maiores navios do mundo.
Quem é que determina a quantidade de animais razoável para um navio? Está definido na atual legislação que é necessário 1 m2 por cada bovino e 1 m2 para cada 3 ovinos.
Todos os navios são sujeitos a uma vistoria presencial pela DGAV antes da partida, pelo que assume-se que estão garantidas as condições de bem-estar para as viagens, de acordo com os parâmetros exigidos na lei. Mas não é isso que os vídeos disponíveis na página de Facebook da PATAV e de outras associações congéneres a nível mundial demonstram.
Normas de bem-estar animal na legislação europeia
É o regulamento (CE) nº 1/2005, de 22 de dezembro de 2004 que define as normas de bem-estar animal para o transporte dentro da União Europeia. No entanto, as medidas previstas na legislação e os vídeos divulgados pela Plataforma Anti-transporte de Animais Vivos (PATAV) não parecem coincidir.
Começando pelo primeiro ponto, este regulamento diz que “ninguém pode proceder ou mandar proceder ao transporte de animais em condições suscetíveis de lhes causar lesões ou sofrimentos desnecessários”. Ora, os vídeos mostram que os animais chegam com lesões evidentes provocadas pela sobrelotação, cegos por causa de feridas provocadas por outros animais, em stress, etc. No mesmo documento, lê-se ainda que “os meios de transporte e os equipamentos de carregamento e descarregamento devem ser concebidos, construídos, mantidos e utilizados por forma a evitar lesões e sofrimento” dos animais.
Este regulamento foi aprovado em 2004 e entrou em vigor em 2005. Passaram-se 17 anos desde a aprovação e algumas instituições europeias de defesa animal consideram que está na altura de rever esta legislação. Há até uma petição, criada pela Four Paw, para que a nova lei seja mais exigente, ambiciosa e possa pôr fim aos relatos de maus tratos que chegam de todo o mundo. Até à data de fecho deste artigo, a petição ainda não tinha alcançado a meta de 50 mil assinaturas. Por isso, se te identificas com a causa animal, ainda vais a tempo de ser mais uma voz ativa na criação de melhores condições de bem-estar animal nestes transportes. Encontras a petição online, aqui.
A própria União Europeia já mostrou sinais de querer implementar mudanças na atual legislação. Em janeiro de 2022, uma sessão plenária aprovou um documento com “recomendações sobre a proteção dos animais” durante o transporte, na qual se podia ler que “a assembleia europeia e os estados-membros devem intensificar os seus esforços para garantir o bem-estar dos animais durante o transporte e que as regras europeias nesta matéria devem ser atualizadas, propondo também que seja dada preferência ao transporte de carcaças ou de carne em vez de animais vivos”.
No mesmo documento, os eurodeputados reconhecem que nem sempre é garantido o bem-estar animal. “As regras em vigor nem sempre são respeitadas nos Estados-membros e não têm plenamente em conta as diferentes necessidades dos animais, de acordo com a espécie, a idade, o tamanho e as condições físicas, nem os aspetos fisiológicos e etológicos específicos, os requisitos em matéria de alimentação e abeberamento, de temperatura, humidade ou manuseamento”, lê-se.
Apesar destas considerações em janeiro de 2022, até agora ainda não foram anunciadas quaisquer alterações à legislação europeia sobre o transporte de animais vivos para países terceiros.
Luxemburgo e Nova Zelândia já baniram o transporte de animais vivos
No início de 2022, surgiu uma boa notícia para a causa animal. O Luxemburgo anunciou o fim do transporte de animais vivos para fora da União Europeia, em fevereiro, e a medida entrou em vigor logo no mês de março. Tornou-se, assim, o primeiro país dentro da Europa a tomar esta decisão.
Quando anunciou a medida, o Ministro da Agricultura luxemburguês, Claude Haagen, referiu o bem-estar dos animais como a principal motivação para esta nova legislação no país e garantiu que iria defender a medida junto dos restantes países europeus.
Mais recentemente, foi a vez da Nova Zelândia seguir os mesmos passos, proibindo a exportação de animais vivos. O anúncio chegou em setembro, mas a nova legislação só vai fazer efeito a partir de abril de 2023. Neste caso, esta medida surgiu depois de, em 2020, um navio de transporte de animais ter afundado, tirando a vida a 41 elementos da tripulação e a 6 mil animais não humanos.
Depois do inesperado incidente, provocado por um tufão, um movimento de indignação para banir a exportação de animais vivos além-fronteiras, neste género de embarcações, começou a ganhar forma. Aquando do anúncio da medida, o Ministro do Ambiente, Damien O’Connor, defendeu que esta alteração legislativa iria proteger a Nova Zelândia face às exigências dos consumidores, por sua vez cada vez mais eticamente conscientes.
A visão da Plataforma Anti-Transporte de Animais Vivos
A Plataforma Anti-Transporte de Animais Vivos (PATAV) é uma das vozes mais ativas em Portugal nesta temática. Nasceu como um movimento cívico e tem trabalhado pelo fim deste negócio. A Associação Vegetariana Portuguesa falou com Constança Carvalho, uma das representantes do movimento, para perceber quais os principais problemas desta atividade de exploração.
A PATAV destaca também o impacto ambiental do transporte de animais vivos. “A lei diz que os animais que morrem durante o trajeto devem ser desfeitos mas, na verdade, são lançados inteiros borda fora. Depois dão à costa nas praias e isso constitui um problema ambiental”, descreve, dando conta de que “apareceu uma ovelha em Faro e uma vaca em Tróia. Foram animais que caíram sem condições de segurança ou morreram a bordo e foram atirados inteiros. Temos documentadas pelo menos 2 situações de queda de animais, uma vez foi no Porto de Sines, outra no Porto de Setúbal. Haverá com certeza muitas mais”, descreve Constança Carvalho.
Ainda sobre o impacto ambiental destes transportes, a associação ambientalista ZERO, em conjunto com a PATAV, estima os números deste negócio. Numa única viagem entre Portugal e Israel, geram-se emissões equivalentes a mais de 300 viagens entre Porto e Lisboa. Mas não é só. “O metano produzido por estes animais é altamente poluente, os cadáveres atirados inteiros são também fonte de poluição”, aponta a representante da PATAV.
Considerando o bem-estar animal e o impacto ambiental, e salientado outros fatores, a plataforma refere, na página de Facebook do movimento, que este negócio “apresenta indiscutivelmente variadas implicações éticas, ambientais, económicas, legais e de saúde pública”.
Sobre o destino destes animais, Constança Carvalho defende que a questão religiosa associada à exportação para países de Médio Oriente não passa de um mito. “Já falamos com entidades religiosas do Médio Oriente. Neste momento, 100% das exportações portuguesas são para Israel e já houve uma petição de líderes religiosos israelitas para pôr fim a isto. Depois das viagens longas, a carne de animais não pode ser considerada kosher ou halal”, começa por explicar.
O que significa kosher ou halal? As duas palavras dizem respeito a rituais judeus e muçulmanos de morte de animais para consumo. Ao contrário das normas europeias em que os animais são insensibilizados antes de serem mortos, nestes rituais faz-se um golpe no pescoço, drenando o sangue, com os animais ainda vivos e conscientes.
Não havendo questões religiosas, porquê a exportação?
Sobre possíveis alterações legislativas na União Europeia, a PATAV mostra-se reticente. “O que nós diríamos é que não é possível transportar animais vivos durante 9 dias no porão de navios de nenhuma maneira. Para nós há que abolir este tipo de transporte”, conclui a responsável.
Mesmo sob as condições “mais controladas”, o transporte de animais não humanos pode colocá-los sob stress por diferentes fatores (privação de comida, água e espaço durante a viagem são apenas três exemplos).