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Agricultura Celular e o seu potencial impacto para a saúde, o clima e os animais: com entrevistas de especialistas portugueses

Na última década e, particularmente, nos últimos anos, o conceito de um hambúrguer ou de um naco de frango feito em laboratório deixou o domínio da ficção científica e tornou-se numa realidade bem palpável, ainda que o enorme avanço tecnológico nesta área se defronte com grandes desafios em termos de se ampliar o produto à escala comercial e da regulamentação de mercado. Neste artigo, desenvolvido em parceria com a CellAgri Portugal, a primeira organização em Portugal para o Desenvolvimento da Agricultura Celular, vamos aprofundar um pouco mais este tema e procurar esclarecer alguns dos principais aspetos relacionados com a mesma, e ainda apresentamos as respostas de entrevistas com alguns intervenientes portugueses nesta área, que se especializaram na mesma.

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1. O que é a Agricultura Celular?

A Agricultura Celular consiste na produção de alimentos e outros produtos agropecuários alternativos, a partir de células ou derivados de células. Este processo técnico-comercial engloba produtos “acelulares”, como o leite, que podem ser produzidos por fermentação de precisão, e produtos “celulares”, como o couro ou a carne cultivada

A carne cultivada é produzida a partir dos mesmos tipos de células que constituem a carne “tradicional”, nomeadamente células musculares e células de gordura. Já disponível em alguns mercados, nomeadamente Singapura e Estados Unidos, é previsível que, num futuro não muito longínquo, uma parte dos alimentos que consumimos seja produzida através da agricultura celular, o que se prevê que tenha um impacto muito positivo no ambiente e no bem-estar animal. 

Este último aspecto é de grande importância, uma vez que a partir da recolha de um pequeno número de células, sem causar sofrimento ao animal, é possível produzir uma grande quantidade de alimentos. É inclusivamente possível utilizar as mesmas células durante um longo período de tempo, através de um processo de “imortalização” celular, não sendo necessário voltar a recorrer ao animal.

2. Como funciona?

O processo de produção de carne cultivada envolve diferentes passos e tecnologias:

  1. Em primeiro lugar é necessário isolar uma amostra de células estaminais do animal em causa, como por exemplo as células satélite (células estaminais musculares) da forma menos invasiva possível. 
  2. Com o objectivo de obter o número de células necessário para a produção de um alimento, estas células são cultivadas em fermentadores e alimentadas com um meio rico em proteínas, vitaminas e minerais, de uma forma altamente controlada, onde se multiplicam e são “educadas” para ter as características das células de músculo e gordura que existem na carne convencional.
  3. Finalmente, estas células são processadas de forma a obter, por exemplo, hambúrgueres, outros formatos de carne ou peixe (por exemplo bifes, salsichas ou filetes), ou mesmo lacticínios e couro. Neste passo, tecnologias bem estabelecidas de engenharia alimentar e de engenharia de biomateriais, como a  bioimpressão 3D, ou impressão 3D alimentar, têm uma grande importância no sentido de criar uma estrutura de suporte para as células obterem o formato pretendido ou customizar as propriedades organolépticas do produto final.
agricultura celular 5

3. Quais as vantagens da agricultura celular face aos métodos tradicionais da agropecuária?

Em relação a outras fontes alternativas de proteína, a carne cultivada poderá ter a vantagem de não ser um produto que imita as propriedades originais da carne, mas que é constituído pelas mesmas células e, como tal, será possível obter propriedades sensoriais e nutricionais muito mais próximas à da carne “tradicional”. 

O processo de produção da carne cultivada é extremamente controlado e poderá permitir enriquecer e fortificar o produto final em vitaminas, minerais e outros nutrientes essenciais. Será possível também fazer uma nutrição personalizada para cada consumidor, uma vez que existe controlo específico acerca dos componentes do produto final. Um exemplo é o fabrico de bifes ou filetes com diferentes percentagens de gordura e músculo, tendo em conta a preferência do consumidor. 

É também importante referir que o processamento das células nos cultivadores é feito em condições de esterilidade, pelo que o uso de antibióticos pode ser minimizado/eliminado na produção destes alimentos. Este ponto é particularmente importante hoje em dia, visto que o elevado uso de antibióticos em agropecuária tem levado ao aparecimento de bactérias multirresistentes, o que representa um grande risco para a saúde pública.

Embora originalmente alguns produtos tenham sido desenvolvidos recorrendo ao uso de soro fetal bovino (FBS), frequentemente utilizado noutros processos de cultivo de células animais, a substituição deste produto é uma prioridade para a indústria de carne cultivada. Assim, a necessidade de atingir processos sustentáveis e éticos, levou a intensa investigação científica em alternativas ao FBS, existindo já novas soluções disponíveis, cuja composição não tem qualquer origem animal, e empresas focadas somente neste objetivo.

GOOD Meat Hubers Butcher lead

4. O ecossistema actual: de um hambúrguer luxuoso a um produto democratizado

O primeiro hambúrguer de carne cultivada foi produzido em 2013 pelo Prof. Mark Post da Universidade de Maastricht, Países Baixos, e na altura custou cerca de 300.000 dólares a desenvolver. Desde então, têm existido múltiplos avanços significativos. 

Em particular, na produção de frango celular, cuja comercialização se iniciou em Singapura em dezembro de 2021, pela empresa GOOD Meat. Mais recentemente, em Junho de 2023, a mesma empresa e a UPSIDE Foods receberam também a aprovação pela FDA e USDA (entidades reguladoras) nos Estados Unidos para a comercialização dos seus produtos. Prevê-se para breve a aprovação da comercialização de carne de outros mamíferos e peixes, como o salmão e o atum.   

Atualmente existem cerca de 150 start-ups no setor, algumas participadas por grandes multinacionais (p.e. Nestlé, Cargill, JBS, Tyson Foods). Os governos do Japão, China, Singapura, Israel, Estados Unidos (Califórnia), Reino Unido e Países Baixos criaram, nos últimos anos, fundos específicos para incentivar e acelerar a investigação e desenvolvimento tecnológico ao nível universitário e empresarial da área de agricultura celular e proteínas alternativas. No caso dos Países Baixos, o governo anunciou mesmo um investimento de 60 milhões de Euros para educação e investigação no setor com o objectivo de tornar o país um líder na área

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Entrevista com Diana Marques

Co-fundadora do Alt-Protein Project

É uma área muito interdisciplinar; destaco algumas áreas como a bioquímica, engenharia biomédica, e biotecnológica como as mais óbvias, mas a área da agricultura celular abre também as portas a engenheiros informáticos, ou engenheiros mecânicos, por exemplo, dado os desafios de escalar a produção industrialmente. 

Aconselho começar por estágios em empresas relacionadas com a área; em Portugal ainda são poucas (a Cell4Food, por exemplo). Recomendo também o site da GFI (Good Food Institute – https://gfi.org/vocation/) para encontrar vagas nesta área.

A europa terá que convergir para processos mais uniformizados, pois neste momento cada empresa tem o seu processo.Considero que, a nível científico, um processo que exige extração de células animais (depende de animais) será sempre menos economicamente viável e eficiente, sendo que será ideal recorrer apenas a um único processo de biopsia (extracção de células), e multiplicação infinita das mesmas, o que considera ser um processo científico mais robusto e eficiente.

Quase todas as empresas têm feito esforços no sentido de deixar de ser dependente da FBS, por não ser economicamente viável (i.e. os custos são elevados), e existe também muita variabilidade (tem composição muito variável), e por isso as empresas na área da agricultura celular não têm interesse em utilizar esta solução. 

 

A maioria das empresas têm desenvolvido alternativas à FBS (meios de cultura), utilizando proteínas vegetais semelhantes às que existem no FBS (com características semelhantes), o que permite baixar significativamente o custo e tornar o processo de produção mais previsível. Algumas empresas recorrem a processos de fermentação para desenvolver estas alternativas ao FBS.

5. Carne de laboratório ou carne cultivada?

Embora a carne cultivada tenha sido apelidada de “carne artificial” ou “carne de laboratório”, estas designações são questionáveis e podem levar à percepção, por parte dos potenciais consumidores, de estes produtos serem pouco saudáveis ou mesmo ameaças à saúde pública. A ideia de que a carne cultivada é produzida em laboratório é pouco realista, uma vez que a produção das grandes quantidades de produto necessária para satisfazer a procura dos consumidores terá sempre de ser realizada em ambientes industriais semelhantes, por exemplo, à produção de cerveja. 

Apenas o desenvolvimento inicial do produto e da tecnologia poderia ser realizado num ambiente laboratorial, o que de resto já acontece com outros tipos de produtos alimentares. A agricultura celular e a carne cultivada são ainda inovações muito recentes e a introdução deste tipo de produtos no mercado será sempre alvo de uma criteriosa avaliação por parte das agências de segurança alimentar, como é o caso da EFSA na Europa, que assegurará a segurança do seu consumo para a saúde humana, tal como acontece com outras inovações alimentares. Neste sentido, recomenda-se a leitura do documento “Food safety aspects of cell-based food”, elaborado pelo FAO e pela Organização Mundial de Saúde e pela Organização para a Alimentação e Agricultura, das Nações Unidas em Abril de 2023 .

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Entrevista com José Espírito Santo

CFO na Cell4Food e membro da organização CellAgri

Não vejo isso como algo necessariamente negativo. Temos que ser realistas, Portugal não tem os recursos financeiros e estrutura de financiamento de startups como tem países como os EUA, ou os apoios governamentais como os que têm a Holanda. Existe ainda a questão dos salários praticados em Portugal, sendo que os cientistas são muito mal remunerados no nosso país, comparativamente com outros países. E por esse motivo é que existem empresas neste sector que estão a recrutar em Portugal, pois temos mão-de-obra qualificada, e cujo custo de contratação é mais baixo.

É preciso criar soluções de financiamento de longo-prazo, como grants (financiamento público), sendo que um exemplo disso é o PRR (Plano de Recuperação e Resiliência), que poderia estar a investir no futuro, num sector como o da agricultura celular, e não o está a fazer. 

 

Em Portugal a situação é mais complicada porque o nosso mercado é muito menos dinâmico. Para além disso, a questão essencial é o capital de risco; as sociedades de capitais de risco que temos não têm visão, porque não estão dispostas a correr tanto risco, considerando que este sector ainda não está em condições de fornecer dados precisos de retorno (e de prazos), ao contrário do que acontece lá fora, onde existe muito mais capital de risco investido. 

Sim, estes dados parecem corresponder com o que tenho lido de imensos estudos de diversos países; as respostas variam muito consoante a forma como se explica do que se trata a agricultura celular e a carne cultivada. Na minha opinião isto não é muito importante pois na próxima década não vai sequer existir sequer capacidade de produção para satisfazer 5% destes consumidores, pelo que se trata de uma falsa questão. 

 

Um dos maiores problemas, na realidade, reside nos custos dos recursos humanos (pessoas qualificadas), por um lado, e na parte técnica, nomeadamente nos biorreatores (cubas de produção, cujo custo de aquisição é muito elevado). Para termos uma ideia, construir uma unidade piloto de produção para apenas produzir algumas poucas toneladas por ano custa 50 a 100 milhões de euros, e não estamos a falar de produção de escala, mas sim para teste de mercado. 

 

O processo de evolução deste sector será muito mais lento se depender apenas de capital privado, porque os capitais de risco não estão muito vocacionados para este tipo de sector. Falta aqui fundos estruturais e de longo prazo (o dinheiro paciente) da banca do estado.

6. Os impactos da Agricultura Celular

A carne cultivada, para além da dimensão do bem-estar animal, tem um imenso potencial em termos de produção sustentável de alimentos. Um estudo de análise do ciclo de vida (“life-cycle analysis”) independente realizado pela consultora CE Delft (link), mostrou que no ano 2030 a carne cultivada poderá ter uma menor pegada carbónica e reduzido impacto ambiental, comparado com a produção de carne convencional, a um custo competitivo. 

Com o aumento da escala de produção e com um aumento da eficiência dos processos, seria possível uma produção ainda mais sustentável e a um preço mais competitivo. Estima-se uma redução das emissões de gases de efeito de estufa na ordem dos 80%, redução da ocupação de terrenos em 90% e redução do consumo de água em 90%, comparativamente com a produção “tradicional” de carne. Embora estes sejam ainda estudos preliminares, os resultados indicam que a produção de carne cultivada poderá ter um impacto muito positivo no sistema alimentar e no ambiente. 

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Entrevista com Vítor Espírito Santo

Diretor de Biologia Celular na Hoxton Farms

O que eu sinto que faz falta em Portugal é a iniciativa privada.  Falando da minha experiência, quando terminei o meu doutoramento, a minha perspectiva era carreira académica ou eventualmente ser professor; é para isso que somos treinados em Portugal, para produzir papers ou publicações científicas – gerar conhecimento – mas não há tanto uma perspectiva de empreendedorismo, embora isso agora esteja a mudar um pouco. Portanto, ao terminar o doutoramento, a minha opção era seguir a via académica ou emigrar. 

 

Na minha perspectiva, o que é importante é que haja cada vez mais doutoramentos que dirijam os recém-formados para a indústria, e que haja capital privado que capte este talento que podia ser utilizado. 

 

A meu ver, a investigação em Portugal tem que entrar num mecanismo mais competitivo do ponto de vista empresarial, e de desenvolver um produto que pode ser lançado no mercado em poucos anos, e não apenas soluções de longo-prazo. É natural que um investidor só irá investir capital na empresa se considerar que vai ter um retorno em alguns anos; por outro lado, também há formas de implementar um plano de negócio que também podem ir ao encontro do investidor a médio-prazo. Não podemos esperar conseguir logo produtos perfeitos, e é normal que os produtos possam ser melhorados ao longo do tempo; nesta área da carne cultivada temos que pensar de forma semelhante. Exemplo disto é a JUST (empresa onde trabalha Vítor Espírito Santo, que agora se designa Good Meat), que era a única empresa alimentar na área que efectivamente lançou vários produtos comercializáveis.

Considero que desempenha um papel fundamental, por exemplo, nos apoios à construção de instalações (unidades de fabrico), pois os custos são muito elevados, e o capital privado não tem tanta disponibilidade para este tipo de investimentos elevados, em que as margens de lucro serão baixas. 

 

Um exemplo deste tipo de apoio seria Portugal desenvolver alguma área regional do país ao disponibilizar terreno e outras infraestruturas para acolher uma empresa, criar uma política mais favorável ao nível fiscal, de impostos, entre outras medidas. 

Isto preocupa-me menos, pois considero que vai haver uma integração natural destes produtos, sem que os consumidores sequer se apercebem. Dá o exemplo da fruta; quando vou a um supermercado, encontro uma grande diversidade de frutas que são geneticamente modificadas, e as pessoas nem sequer se questionam, e consideram que aquilo é expectável. 

 

Vai demorar muito tempo até a carne cultivada se tornar competitiva, porém, considero que este debate sobre nomenclatura é prematuro. Considero que devíamos tornar este processo como algo natural, sem estar a diferenciar tanto em relação à carne de origem tradicional. 

 

Ainda assim, se tiver que escolher uma terminologia ideal, diria “carne cultivada”, que é a que utilizamos mais recorrentemente, e que designa o processo, isto é, uma cultura de células, ou talvez “carne celular”, que é outro termo que pode ser adequado. Não faz muito sentido lhe chamar “carne de laboratório”, porque não corresponde à realidade, e já não é algo que é feito apenas em laboratório.

 

A meu ver, o principal factor de transição é o custo, isto é, produzir a carne cultivada a um preço equiparável aos produtos de origem animal. 

7. E por cá, o que se faz em Portugal?

Em Portugal, neste momento, existem duas start-ups a trabalhar em produtos celulares, a Corium Biotech, que se dedica à produção de couro de animais exóticos, e a Cell4Food, dedicada à produção de polvo celular. 

Do ponto de vista da investigação, destaca-se o projecto FEASTS – Fostering European Cellular Agriculture for Sustainable Transition Solution  (horizon-cl6-2023-farm2fork-01-13), financiado pelo programa HORIZON da União Europeia, com uma equipa de 36 parceiros internacionais, de 17 países diferentes, que pretende criar uma extensa e imparcial base de conhecimento sobre a carne e peixe cultivado e o seu lugar no sistema alimentar. Irá analisar de forma independente o impacto económico, ambiental, social da carne cultivada, tal como a segurança e nutrição, dando suporte à União Europeia para futuras decisões quanto à sua regulamentação. O projecto, com início em Janeiro de 2024, é coordenado pelo Prof. Frederico Ferreira do Instituto Superior Técnico (IST) e conta com a participação de equipas do Instituto de Bioengenharia e Biociências (iBB-IST), do Laboratório Ibérico Internacional de Nanotecnologias (INL), do Laboratório Colaborativo S2Aqua e da CellAgri Portugal. 

 

SOBRE OS AUTORES

A CellAgri Portugal (www.cellagri.pt), Associação Portuguesa para o desenvolvimento da Agricultura Celular, foi criada em março de 2022. A associação agrega dezenas de investigadores de várias universidades e instituições ligadas à biotecnologia, procurando ser um agente relevante em diferentes vertentes desta área e desenvolver, a curto-prazo, os primeiros produtos de agricultura celular nacionais.

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Autores: Carlos Rodrigues, Sara Oliveira, Diana Marques, João Garcia, José Espírito Santo, Joaquim M.S. Cabral, Nuno M. Alvim

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