Novos restaurantes veganos e vegetarianos a abrirem um pouco por todo o país, novas empresas a surgir todos os anos, que se dedicam a fabricar e comercializar produtos 100 % vegetarianos, ou um número cada vez mais significativo de associações que defendem e promovem este estilo de vida saudável e harmonioso para com os animais e o planeta. Não existem dúvidas de que o vegetarianismo vem ganhando cada vez mais adeptos em Portugal. Muitos dizem tratar-se apenas de uma nova tendência sociocultural, mas será que é mesmo assim ?
Se investigarmos um pouco sobre a história do movimento vegetariano em Portugal, talvez nos surpreendamos ao descobrir que em tempos tão remotos quanto o da Implantação da República já era notável todo um alvoroço em volta deste tema. Vem connosco fazer uma viagem no tempo e descortinar a verdade sobre a evolução do vegetarianismo em Portugal ao longo do último século !
As primeiras décadas do século XX: o vegetarianismo emerge com grande força em terras lusitanas
No ano de 1908, por influência de movimentos vegetarianos que surgiam em vários países da Europa, deu-se início a uma verdadeira revolução vegetariana em Portugal. O grande impulsionador do vegetarianismo e naturismo no nosso país seria o então médico Amílcar de Sousa, especializado em dietética e nutrição, que vivia no Porto e que conseguiu sensibilizar outros médicos e personalidades influentes da burguesia portuense a adotar e promover um estilo de vida natural e saudável, em que dietética e ética se conciliavam em conversas animadas e em que se tentava banir a carne e o peixe da mesa.
Apostando numa alimentação à base de frutas, verduras e legumes crus, a maioria destes vegetarianos pioneiros eram industriais, homens de negócios e gente ligada ao exército e ao clero, que se questionava veementemente sobre a efetividade da medicina convencional e procurava alternativas para um modo de vida verdadeiramente são.
Adeptos do naturismo, recorriam a diversas ferramentas a fim de divulgarem o estilo de vida que adotavam, desde a publicação de uma tabela nutricional com diferentes alimentos de origem vegetal, a fotografias que retratavam a saúde de crianças e adultos, ou mensagens que apelavam ao consumo de produtos naturais e reprovavam a carne com fotografias que invocavam a matança de animais.
Surge a Revista “O Vegetariano”
Em 1909, era lançada a primeira edição da revista mensal‘O Vegetariano’, um mensário naturista ilustrado dirigido pelo Dr. Amílcar de Sousa. Uma investigação realizada pelo Projeto ALIMENTOPIA, conta-nos que este periódico que foi publicado mensalmente entre 1909 e 1935, chegou a atingir 3814 subscritores que se espalhavam não só de norte a sul do país, mas também pelo Brasil, ex-colónias ultramarinas e diversos países da Europa.
Sabe-se que em 1911 a revista já era internacionalmente conhecida e durante 26 anos ofereceu aos adeptos da dieta vegetariana variadíssimos artigos ilustrados com fotografias, receitas vegetarianas e diversos anúncios de produtos e serviços de alojamento e alimentação adequados à vida naturista, dentro e fora do país, mas também de prestação de cuidados médicos, incluindo consultas por correspondência.
No Porto e em Lisboa, mas também fora dos grandes centros urbanos, um coletivo verdadeiramente ativo de médicos contribuía para a revista com artigos científicos, conselhos práticos e descrição de casos de cura de doentes que desacreditavam a medicina tradicional. Este grupo de ativistas pela causa vegetariana privilegiava métodos de cura natural, como a helioterapia (tratamento pelo sol), a hidroterapia, a psicoterapia e o naturismo.
Surge a Primeira Sociedade Vegetariana de Portugal
Em 1911, dois anos após a primeira edição da revista ‘O Vegetariano’ foi fundada no Porto a Sociedade Vegetariana de Portugal pelo comité que publicava a revista. Esta entidade seria responsável pela publicação de dezenas de livros (alguns dos quais traduções de autores estrangeiros) dedicados a um modo de vida mais saudável que se apoiava numa dieta de base vegetal. Os autores desses livros e artigos apresentavam o vegetarismo, o vegetalismo e o frugivorismo como solução para problemas sociais, morais e de saúde tais como a fome no mundo, a falta de higiene e o desinvestimento na saúde pública.
Pouco se falava ainda da defesa animal ou de ecologia, ainda que o Dr. Amílcar de Sousa tenha demonstrado a sua sensibilidade pelos animais num artigo de 1912 d’O Vegetariano intitulado ‘Caldo de Carne’:
“Ver morrer um boi é para uma consciência límpida e para um espírito moral um espectáculo canibalesco, incompatível com a humanidade. (…) Assistir ao assassinato dum cordeiro é, sem dúvida, barbaridade infame. Queremos acreditar que a maior parte da gente que bebe às colheres a sopa, ou corta com a faca um pedaço de vaca, se visse morrer os animais, não se banquetearia com tão grande gáudio…” escrevia o médico portuense.
Como indica o Centro Vegetariano, alguns dos mais célebres livros publicados pela Sociedade Vegetariana de Portugal foram: “O Vegetarianismo e Fisiologia Alimentar”, de H. Collière; “Dieta Frugívora e Renovamento Físico”, de O. L. M Abramowshi; “O Vegetarianismo e Moralidade das raças”, de Jaime de Magalhães Lima; “A Cura da tuberculose pelo vegetarianismo”, de Paul Carton; “Parto sem Dor”, de William Taylor; “O Homem é Frugívoro”, de Ardisson Ferreira assim como “O Naturismo” e muitas outras das obras de Amílcar de Sousa.
Até Hotéis e Cafés Vegetarianos já existiam ao virar do século XX!
Um ano havia passado desde a criação da Sociedade Vegetariana Portuguesa, quando em 1912 surge em Lisboa, no número 100 da Avenida da Liberdade, a Cooperativa Frutariana de Lisboa, que se tornaria um ano mais tarde na Maison Végétarienne.
Simultaneamente no Porto, abriam espaços como o Grande Hotel Vegetariano – Pensão Naturista, o primeiro estabelecimento hoteleiro do país dedicado à clientela vegetariana, ou o Restaurante Fruti-Vegetariano na Rua Sá da Bandeira, que servia café sem cafeína e vinho sem álcool. Ainda nesse ano, foi criado também o Núcleo Naturista de Lisboa, que daria lugar à Sociedade Portuguesa de Naturalogia, ainda existente e em funções hoje em dia.
Bodas Vegetarianas, e até mesmo livros de receitas best-sellers!
Em 1914, um grande acontecimento publicamente divulgado e aclamado por oferecer aos seus convidados um menu de frutos e vegetais em vez de “despojos cadavéricos” seria o casamento entre o editor da revista ‘O Vegetariano’ e Julieta Ribeiro. A primeira boda vegetariana do país teve grande sucesso e demonstra como o regime vegetariano era preferido em alguns dos grandes eventos sociais da burguesia da época.
Dois anos mais tarde, em 1916, a mesma Julieta Ribeiro viria a publicar através da Sociedade Vegetariana de Portugal, o primeiro livro de receitas português intitulado “Culinária Vegetariana, Vegetalina e Menus Frugívoros”. A obra esgotou rapidamente tendo chegado mesmo à quarta edição!
Durante o Estado Novo: o vegetarianismo percebido como ameaça pelo governo ditatorial acaba por cair no esquecimento dos portugueses
O estilo de vida e pensamento político dos vegetarianos e naturistas que havia conquistado milhares de seguidores durante os primeiros anos do século XX, começou a ser visto como uma ameaça a partir da instauração do governo de Salazar. Este contexto de ditadura nacional poderá estar na raiz da ausência de conhecimento dos mencionados antepassados vegetarianos da nossa memória coletiva.Como explica Fátima Vieira, Vice-Reitora da Universidade do Porto e investigadora do projeto ALIMENTOPIA:
“É um caso de amnésia coletiva que queremos aqui recuperar: um país cuja identidade cultural se afirma pelas mil maneiras de cozinhar bacalhau, pelo peixe fresco da costa, pelas papas de sarrabulho e pela carne de porco à alentejana, e que recalca a memória de um período da sua história em que um número considerável de indivíduos optou por adotar a dieta vegetariana”.
O Ressurgimento do Vegetarianismo na Década de 60
Ainda assim, três acontecimentos importantes na história do vegetarianismo ocorreram durante este período de liberdade condicionada: em 1962 foi inaugurado o restaurante ‘A Colmeia’, em Lisboa, o mais antigo restaurante vegetariano ainda em funcionamento do país; nove anos depois, em 1971 é fundada a UNIMAVE, União Macrobiótica e Vegetariana também na capital. E no ano da revolução dos cravos, em 1974, abre a primeira loja Celeiro-Dieta na baixa de Lisboa, com grande oferta de produtos saudáveis e naturais, muitos dos quais de origem vegetal.
Foi também na década de 60 que surgiu a primeira ‘Associação Vegetariana Portuguesa’, co-fundada por alguns membros que haviam saído da Sociedade Portuguesa de Naturalogia. Nos anos 80, a AVP e a SPN voltariam a fundir-se e a designação da primeira deixaria de existir durante várias décadas até que a atual Associação Vegetariana Portuguesa foi fundada, em 2006.
Fim do século XX e início do século XXI: o vegetarianismo volta a expandir-se e é adotado por vários milhares de portugueses
O final do século XX e a viragem do milénio trouxeram consigo um vívido despertar e uma nova consciência relativamente a questões ambientais e sociais, e também no que diz respeito à proteção e defesa dos animais. Os movimentos ecologistas e pela defesa dos animais que ocorriam no estrangeiro foram pouco a pouco chegando a Portugal e fazendo com que cada vez mais pessoas conhecessem, se interessassem e adotassem o vegetarianismo.
A internet assumiria também um papel fulcral nesta segunda revolução vegetariana portuguesa que continua a desenrolar-se ainda nos dias de hoje: o acesso facilitado à informação fez com que cada vez mais portugueses ficassem a conhecer os benefícios do estilo de vida vegetariano tanto para a saúde humana, como para o bem-estar dos animais e do planeta.
Em 2001 surge online o que viria a ser o Centro Vegetariano, e em 2006 é criada a atual Associação Vegetariana Portuguesa, dois dos principais canais de divulgação e sensibilização da causa vegetariana no nosso país. Multiplicaram-se também os sites, blogs e canais do youtube vegetarianos feitos por portugueses/as para portugueses, oferecendo novas receitas sem carne, peixe e outros produtos de origem animal fáceis de replicar em casa.
Em 2009, foi criado o Partido Pelos Animais (PPA), o primeiro em Portugal a defender oficialmente a dieta vegetariana. O PPA viria posteriormente a alterar a designação para Pessoas, Animais, Natureza (PAN), que desde então lançou inúmeras campanhas e projetos de lei que visam o bem-estar e a proteção animal.
Um estudo feito pela Nielsen em parceria com o Centro Vegetariano em 2017, demonstra uma extraordinária evolução do vegetarianismo em Portugal. O número de vegetarianos/as em Portugal quadruplicou em apenas 10 anos (em relação ao estudo anterior feito em 2007) o que indica que 1,2% dos portugueses/as não consomem peixe nem carne e que 0,6% não consomem qualquer produto de origem animal. Ou seja, há três anos eram 120,000 vegetarianos/as e 60,000 os veganos/as do nosso país.
E de hoje em diante, que história se irá escrever?
Esta revolução vegetariana do século XXI, que como vimos, não é mais do que o reafirmar de um movimento surgido há já mais de 100 anos no nosso país, tem vindo a expandir-se cada vez mais e a trazer benefícios múltiplos aos portugueses e às portuguesas que escolheram adotar este estilo de vida. Com o passar do tempo, muitas e muitos se vão apercebendo que aquilo que comemos, vestimos, usamos no nosso corpo ou na nossa casa pode igualmente ser um ato político e social na tentativa de criarmos uma nação mais pacífica, justa e benevolente.
Há 100 anos, o país contava com mais de 3000 vegetarianos, e hoje conta com pelo menos mais de 120,000. Como se dará a evolução da história do vegetarianismo em Portugal no próximo século é ainda uma incógnita, mas os elevados níveis de consciência presentes nas gerações mais jovens sobre os desafios éticos, ambientais, sociais e financeiros de um estilo de vida baseado no consumo e na exploração de outras espécies animais leva a crer que assistimos hoje a uma mudança significativa de paradigma alimentar e de hábitos de consumo, e felizmente, daquelas que têm um impacto verdadeiramente positivo no mundo à nossa volta!
Referências & Ligações Úteis
https://labs.mil.up.pt/blogs/mairasantos/2017/10/02/a-historia-do-vegetarianismo-em-portugal/
https://noticias.up.pt/historias-e-memorias-vegetarianos-portugal-exposicao/
https://www.noticiasmagazine.pt/2019/ha-100-anos-ja-havia-vegetarianos-em-portugal/historias/242944/
https://alimentopia.wixsite.com/mysite/exposicao-o-vegetariano