Existem muitos mitos associados quer ao consumo de carne, quer à ausência do seu consumo. Frequentemente vemos a informação de que a redução ou abstenção do consumo de carne pode originar anemia (deficiência de ferro, vitamina B12 ou vitamina B9) ou outras carências nutricionais, e ainda que a proteína de origem vegetal não é suficiente para o organismo comparativamente à proteína de origem animal.
Do ponto de vista nutricional têm sido feitas várias investigações científicas no sentido de se apurar o impacto que uma alimentação à base de produtos vegetais tem na saúde humana. Vamos ver o que as investigações mais recentes nos mostram sobre essas afirmações.
“Se deixar de consumir carne posso desenvolver anemia”
A anemia pode ser causada pela deficiência de Ferro, Vitamina B12 ou Vitamina B9 (mais conhecida como ácido fólico).
No que diz respeito ao Ferro, os estudos que avaliaram a ingestão de ferro somente através de fontes alimentares mostram que a ingestão (ajustada à biodisponibilidade) tende a ser maior em veganos (21,0 mg/d), em comparação com ovolactovegetarianos, ou comumente designados de vegetarianos (15,3 mg/d) e consumidores de carne (13,9 mg/d) (1-3). Ao avaliar os valores médios de hemoglobina, em todos os padrões alimentares se verificou um valor semelhante (1). Outros estudos que avaliaram a anemia, apenas pelo valor da hemoglobina (hemoglobina <120/130 g/L em mulheres/homens), revelaram uma maior prevalência em vegetarianos e veganos (11 e 17%, respetivamente) do que em consumidores de carne (5%) (1, 4).
Uma vez que a anemia se desenvolve maioritariamente em pessoas do sexo feminino em período fértil poderá ser sugerida a toma de suplementação, tanto em vegetarianas como consumidoras de carne, não sendo esse um critério exclusivo para quem pratica uma alimentação à base de produtos vegetais.
Os estudos parecem ser consensuais sobre a Vitamina B12, evidenciando que a ingestão média tende a ser maior em consumidores de carne (5,6 µg/d) em comparação com vegetarianos (2,1 µg/d) e veganos (1,5 µg/d) (1, 4). Contudo, o baixo aporte desta vitamina pode ser reajustado através de alimentos fortificados de origem vegetal e/ou suplementação, não sendo o consumo de carne essencial para suprir a sua necessidade.
Existem atualmente também vários alimentos disponíveis no mercado que foram reforçados com vitamina B12, como por exemplo, a levedura nutricional, os cereais do tipo corn flakes e as alternativas vegetais aos queijos, leite e iogurtes quando fortificados, os quais devem ser ingeridos com regularidade no caso de deficiência.
Relativamente à Vitamina B9, também os estudos parecem ser consensuais quanto à sua ingestão ser maior em veganos (490µg/d) do que em vegetarianos (403µg/d) e consumidores de carne (331µg/d) (1), não existindo diferenças significativas nos biomarcadores (4).
Ideias chave:
A anemia é o resultado de um défice nutricional inerente à população em geral, não sendo exclusivo em vegetarianos e veganos;
Apesar dos estudos evidenciarem que os vegetarianos e veganos têm um menor aporte de Vitamina B12 face aos consumidores de carne, existem inúmeros suplementos e várias opções de alimentos fortificados no mercado, que sendo ingeridos regularmente satisfazem essa necessidade.
“Se deixar de consumir carne posso vir a desenvolver outras carências nutricionais“
Ao nível do valor energético total (macronutrientes), parece não existir diferenças entre uma dieta vegetariana e outros padrões alimentares (1). Os vegetarianos e veganos tendem a consumir mais fibra que os consumidores de carne, facto muito pertinente para a regulação do trânsito intestinal e consequente absorção de nutrientes (1).
As fibras encontram-se nos produtos hortícolas, frutas, leguminosas, cereais integrais e derivados. As fibras solúveis possuem a capacidade de serem dissolvidas em água e, assim, aumentar a viscosidade do muco que passa entre o estômago e o intestino. Este mecanismo confere a sensação de saciedade e a regulação na absorção de nutrientes, entre os quais açúcares e colesterol, que contribuem para o desenvolvimento de doenças como a diabetes ou hipercolesterolemia. Por outro lado, as fibras insolúveis (não se dissolvem em água) não são completamente metabolizadas pela microbiota intestinal, mas estimulam o trânsito intestinal, prevenindo a obstipação.
Ao nível do consumo de lípidos (gorduras), a maioria dos estudos refere que os vegetarianos e veganos possuem um bom aporte de ácidos gordos insaturados em comparação com consumidores de carne, o que revela uma maior proteção cardiovascular (1). Os ácidos gordos insaturados dizem respeito aos lípidos monoinsaturados (também conhecidos como ómegas) e polinsaturados (PUFA) que estão presentes em alguns produtos de origem animal (como o peixe), como também em produtos de origem vegetal tais como o azeite, frutas oleaginosas, sementes de linhaça e sésamo e óleos vegetais.
Relativamente aos micronutrientes que fazem parte da composição da carne, a maioria dos estudos que analisou apenas o consumo alimentar, revelou que:
- O consumo de Vitamina B2 é tendencialmente igual em todos os padrões alimentares e que o das Vitaminas B1, B3, B6 e E é superior em vegetarianos e veganos relativamente aos consumidores de carne (1);
- O consumo de Fósforo e Zinco é igual em todos os padrões alimentares enquanto que o de Magnésio e Cálcio é superior em vegetarianos e veganos relativamente aos consumidores de carne, ainda que o de Cálcio tenha sido ligeiramente superior (1).
Devido aos resultados apresentados parece não existir maior probabilidade de um vegetariano/vegano desenvolver outras carências nutricionais em comparação com um consumidor de carne, sendo possível este suprir todas as suas necessidades nutricionais (vitaminas e minerais) através de uma alimentação baseada em produtos vegetais (cereais integrais, leguminosas, produtos hortícolas entre outros).
Ideias chave:
Em comparação com os consumidores de carne, os vegetarianos e veganos tendem a consumir mais fibra, gorduras insaturadas, vitaminas do complexo B e vitamina E, e minerais como o Magnésio e Cálcio, o que poderá até ter benefícios para a sua saúde;
Não existe evidência científica de que um vegetariano ou vegano tenha a tendência de desenvolver outras carências nutricionais comparativamente aos consumidores de carne.
“A proteína de origem vegetal será suficiente para a alimentação humana?“
Os estudos feitos demonstram que vegetarianos e veganos tendem a consumir menos quantidade de proteína que consumidores de carne (1). Isto não acontece porque os vegetarianos têm um aporte proteico abaixo do recomendado – o qual não se verifica –, mas sim pelo excesso de consumo de carne por parte dos indivíduos que a consomem (1, 5).
Este facto verifica-se também em Portugal, já que os resultados da Balança Alimentar Portuguesa de 2016-2020 sugerem que o contributo calórico médio da carne (diário) por habitante representou mais de 4 vezes o total de calorias recomendadas pela Roda dos Alimentos, ou seja, os portugueses estão a consumir quatro vezes mais carne do que seria recomendável.
Um dos mitos mais comuns é o de que a proteína de origem vegetal é incompleta e insuficiente para a saúde humana. O certo é que a maioria dos estudos que contabilizaram o consumo proteico em vegetarianos e veganos refere que o aporte proteico diário é assegurado (1), o que revela que na ausência de carne é possível a ingestão diária recomendada de proteína.
Contudo é de notar que nem todas as fontes de origem vegetal possuem um perfil proteico completo, ou seja, têm aminoácidos limitantes. Por esse motivo uma alimentação à base de produtos vegetais deve ser diversificada e constituída por diferentes fontes de proteínas vegetais com perfis de aminoácidos complementares que forneçam todos os aminoácidos essenciais.
A Organização Mundial da Saúde não especifica o aumento das necessidades de proteína para vegetarianos e veganos já que essa complementaridade é feita através da variedade de produtos de origem vegetal consumidos (6).
Ideias chave:
O aporte proteico recomendado, obtido através de produtos vegetais, é assegurado desde que a alimentação seja variada e diversificada, de forma a garantir a complementaridade de aminoácidos.
“Quais os impactos no organismo humano da substituição de carne por produtos de origem vegetal?“
Sabemos que o consumo de gordura saturada está associado ao risco de desenvolvimento de doença cardiovascular, assim como ao excesso de peso e/ou obesidade, e outros problemas metabólicos como a diabetes mellitus tipo 2. A gordura saturada está presente, sobretudo, nas carnes vermelhas, pelo que uma alimentação isenta de carne, e rica em ácidos gordos insaturados pode contribuir para um baixo risco de doença cardiovascular, metabólica e oncológica (3, 5).
Para além disso, o ótimo aporte de fibra e antioxidantes que se verifica nos vegetarianos e veganos pode contribuir para uma boa regulação do trato gastrointestinal e diversidade na microbiota intestinal, produzindo metabolitos com funções anti-inflamatórias, que podem ajudar a controlar os processos de doença (1, 3). Portanto, não existe evidência que aponte para desequilíbrios nutricionais em vegetarianos e veganos em comparação com consumidores de carne.
Voltando assim à questão inicial: o consumo de carne não é essencial para a nossa sobrevivência nem para a saúde humana. É apenas uma escolha, que cada um de nós pode fazer.
Autoria: Sara Barreirinhas (CP 2098N)
Nutricionista e Fundadora da Nutrisciente®
Referências:
1. Neufingerl N, Eilander A. Nutrient Intake and Status in Adults Consuming Plant-Based Diets Compared to Meat-Eaters: A Systematic Review. Nutrients. 2021;14(1).
2. Slywitch E, Savalli C, Duarte ACG, Escrivão M. Iron Deficiency in Vegetarian and Omnivorous Individuals: Analysis of 1340 Individuals. Nutrients. 2021;13(9).
3. Craig WJ, Mangels AR, Fresán U, Marsh K, Miles FL, Saunders AV, et al. The Safe and Effective Use of Plant-Based Diets with Guidelines for Health Professionals. Nutrients. 2021;13(11).
4. Pellinen T, Päivärinta E, Isotalo J, Lehtovirta M, Itkonen ST, Korkalo L, et al. Replacing dietary animal-source proteins with plant-source proteins changes dietary intake and status of vitamins and minerals in healthy adults: a 12-week randomized controlled trial. Eur J Nutr. 2021.
5. Zhubi-Bakija F, Bajraktari G, Bytyçi I, Mikhailidis DP, Henein MY, Latkovskis G, et al. The impact of type of dietary protein, animal versus vegetable, in modifying cardiometabolic risk factors: A position paper from the International Lipid Expert Panel (ILEP). Clin Nutr. 2021;40(1):255-76.
6. Consultation JFW. Protein and amino acid requirements in human nutrition. World Health Organization technical report series. 2007;935:1-265, back cover.