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Os Animais Selvagens Também Sofrem?

Será que os humanos deverão esforçar-se mais para proteger, também, as criaturas selvagens de outros predadores e doenças? Será que nos devemos preocupar se vivem bem ou não? Alguns filósofos e cientistas têm uma resposta pouco ortodoxa....
Os Animais Selvagens Também Sofrem?

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O momento emocionalmente mais difícil na vida de Michelle Graham aconteceu aquando da morte de cinco cobras no seu laboratório. Michelle Graham tinha começado um programa de doutoramento, a partir do qual estudava cobras saltadoras e voadoras. Há várias espécies de cobras que, não só vivem em árvores, como também podem saltar heroicamente de uma árvore para outra. Os cientistas ainda não sabem bem porque é que as cobras saltam, mas o que Graham queria saber era o seguinte: Como? Como é que um animal sem braços e sem pernas pode sequer saltar?

Na esperança de observar cobras a voar, o laboratório de Graham comprou várias cobras recolhidas no sudeste asiático a um comerciante de répteis. Depois, colocou-as num ginásio improvisado na selva, equipado com câmaras GoPro. A equipa queria compreender como é que as cobras se enrolavam sobre si mesmas e depois se lançavam em direcção a ramos de árvores e outros alvos, ajustando a forma de se enrolarem em cada aterragem, em função de cada salto.

Graham adora animais. Tornou-se vegan ao observar, horrorizada como tratamento dos animais nas explorações agropecuárias e as vidas curtas e tortuosas que estes suportam a caminho de supermercados e restaurantes. No entanto, Graham sentia-se confortável a retirar aquelas cobras da selva e a colocá-las no seu ginásio na selva. Presumia que o facto de estarem a viver, simplesmente sendo observadas, não seria pior do que viver na selva. Assim, Graham continuou com as suas experiências.

E depois, recorda, que algo correu “horrivelmente mal”.

Cinco das cobras, que o grupo de investigação de Graham havia comprado, não aceitaram bem a vida em cativeiro. Uma após outra, foram morrendo, independentemente do que Graham e os seus colegas fizessem para as tentar manter em movimento. “Senti-me como se as tivesse matado”, lamenta Graham. A origem da causa biológica das suas mortes, como a fome, o stress ou a doença, não dissiparam o seu sentimento de culpa e responsabilidade. Graham comprou-as, e elas morreram, e se ela não as tivesse comprado, talvez tivessem vivido.

Graham estava angustiada com a perda. “Estava a pensar em desistir do meu doutoramento”, relembra. Então, procurou perceber o que realmente tinha acontecido. “Eu precisava de compreender o quão stressadas estavam pela investigação que estava a desenvolver”, disse Graham. Em grande parte, o processo era não invasivo. “Ainda assim, é necessário pintar marcadores na serpente para seguir a posição do corpo ao longo do tempo, [o que] implica mantê-las imóveis. Além disso, é preciso movê-las de uma gaiola para outra”, explicou a investigadora.

Quanto é que isso as incomoda? Como teria sido a sua vida na natureza? Melhor ou pior do que em cativeiro?”

O que Graham obteve da literatura científica foi esta resposta curta: Ninguém sabe. Poucas pessoas estudaram o que é ser um animal selvagem.

“Senti-me verdadeiramente decepcionada com o pouco que a ciência existente me disse sobre o bem-estar destes animais. Não sabemos nada acerca dos seus modos de vida na natureza; sob uma perspectiva centrada nos animais

Graham está a terminar o seu doutoramento, mas, há dois anos, conseguiu um emprego a tempo inteiro a dirigir um grupo designado de Wild Animal Initiative (WAI) [Iniciativa Animal Selvagem], que financia cientistas interessados em responder às perguntas que há muito a afligem sobre os animais na natureza: O que lhes provoca dor e o que lhes dá prazer?

Se é verdade que os cientistas agrónomos que trabalham na indústria, ou em universidades de investigação, aprenderam imenso sobre a forma como os animais de criação vivem em cativeiro, também é verdade que esse conhecimento é, em grande parte, sob a perspectiva daqueles que os criam. Os ecologistas aprenderam muito sobre como os animais selvagens interagem uns com os outros e como contribuem para a saúde geral do ecossistema, bem como acerca da importância da biodiversidade para a humanidade e para o destino do planeta em geral.

Mas um ponto de vista genuinamente centrado nos animais selvagens – uma perspectiva em que cobras, aves, peixes e roedores merecem cuidado, não devido às suas contribuições para os seus ecossistemas, mas porque são seres dignos de preocupação moral por direito próprio – é raro, tanto na ciência, como na defesa e proteção dos animais. E, com frequência, é considerado como totalmente bizarro no mundo em geral.

Não obstante, durante a última década, um pequeno movimento de filósofos e zoólogos uniu-se em torno da ideia de que o sofrimento dos animais selvagens é um problema moral muito sério e que a dor sofrida por uma cobra saltadora, arrancada da selva, tem tanta importância como a dor de uma galinha numa quinta agropecuária, a dor de um gato num apartamento ou condomínio e mesmo a dor de um ser humano. A partir do momento em que se aceita que a dor importa, os defensores do fim do sofrimento dos animais selvagens argumentam que, se puder ser feita alguma coisa em relação a isso, então é fundamental que tal se torne uma preocupação urgente.

Muitos de nós estamos conscientes das ameaças aos animais selvagens, particularmente quando estes são ameaçados pela actividade humana: basta pensar nos coalas e ursos que morrem ou sofrem com os incêndios ligados às alterações climáticas na Austrália e na Califórnia; ou na tartaruga selvagem com uma palha de plástico enfiada no nariz, na Costa Rica.

Contudo, aqueles que apoiam a causa do sofrimento dos animais selvagens, acreditam que devemos abordar até os problemas que existem quando os humanos não estão por perto. Se os humanos, de repente, desaparecessem, as minhocas comedoras de carne continuariam a assolar os veados, comendo-os vivos lentamente, a partir do interior. Os leões continuariam a caçar gazelas e a arrancar violentamente a carne dos seus corpos ainda em movimento.

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Um perito em coalas, em Sydney, Austrália, aproxima-se de um animal resgatado dos incêndios florestais que ocorreram naquele país em 2020. Os incêndios arderam durante meses, queimando dezenas de milhões de hectares. Créditos imagem: greenmatters.com

O sofrimento dos animais devido a predadores, doenças e fome, ocorre numa escala verdadeiramente gigantesca. Segundo uma estimativa, cerca de 24 mil milhões de animais estão vivos e a ser criados para, em algum momento, se tornarem carne. Temos apenas uma vaga ideia de quantos animais selvagens poderão existir no mundo, mas sabemos que o número é elevado: entre 100 mil milhões a 1 milhão de biliões de mamíferos, pelo menos 10 milhões de biliões de peixes e outros 100 a 400 mil milhões de aves. As explorações agropecuárias começam a parecer quase como um erro de arredondamento, ao lado da dor e sofrimento de todos os peixes no mar.

Devemos reduzir o sofrimento dos literalmente milhares de milhões de animais que vivem na natureza”

esta é uma ideia utópica, que contraria o pressuposto geral dos ecologistas, isto é, que a intervenção humana é uma força malévola na natureza e que devemos deixar estar os habitats naturais. O movimento do sofrimento dos animais selvagens está consciente desta reacção e a “Iniciativa Animal Selvagem” tomou um rumo pragmático. Graham e outros querem responder a perguntas mais básicas: Que tipo de factores contribuem para que uma cobra saltadora viva bem? Como é viver como uma coruja numa cidade? Estão a tentar fazer o trabalho de base, a fim de realizarem intervenções que fazem mais bem que mal.

Se o objectivo a curto prazo de Graham é modesto, o mesmo não se pode dizer do projecto a longo prazo. O movimento do sofrimento dos animais selvagens quer, nada mais, nada menos, que a humanidade reconceptualize totalmente a sua relação com o mundo natural e com os membros do Reino Animalia. Prevê um despertar moral de décadas que nos vai conduzir da simpatia e resignação, ao sentimento de indignação, quando virmos os filhotes de pinguins da “Marcha dos Pinguins” a morrerem à fome. É um projecto que, se for bem-sucedido, terminará com as cobras saltadoras, que Graham adora, a saltarem de ramo em ramo e a sentirem o mínimo de dor possível.

Iniciativa Wild Animal Initiative

A Wild Animal Initiative é um grupo muito pequeno, mas está a crescer a grande velocidade. Gastou um pouco menos de 350 000 dólares em 2019 e, logo a seguir, quase tanto na primeira metade de 2020. Os seus dois principais financiadores têm sido o Center on Long-Term Risk [Centro de Risco a Longo Prazo] e o Centre for Effective Altruism [Centro para um Altruísmo Eficaz], ambos os grupos filiados num movimento “altruísta”, eficaz e mais amplo, que tenta trazer rigor e justificação na aplicação de dólares de cariz solidário. Há muito tempo que consideram o sofrimento dos animais – especialmente o sofrimento dos animais nas explorações agropecuárias – uma prioridade máxima, sendo um movimento com uma tolerância invulgarmente elevada para ideias estranhas e para experiências não lucrativas. O sofrimento dos animais selvagens enquadra-se muito bem nessa conta.

Graham não gosta quando se sugere que o foco do seu grupo, na melhoria da vida dos animais selvagens, é contra intuitivo, ou que chega à maioria das pessoas como sendo estranha. As pessoas “normais” gostam de ajudar os animais na natureza, observa Graham. Preocupam-se com espécies ameaçadas e com a invasão humana nos habitats dos animais.

Mas essa preocupação surge muitas vezes sob a forma de um impulso para preservar o mundo natural, quer para o seu próprio bem, quer para os seres humanos.

A conservação tradicional pode ter este enfoque na manutenção da viabilidade das espécies e na prevenção da extinção, ou na manutenção destes sistemas a funcionar para o bem dos seres humanos. Sempre que é necessário tomar uma decisão entre a saúde e bem-estar dos indivíduos animais versus a viabilidade de uma determinada população ou interesses humanos, geralmente, os interesses dos indivíduos animais são descartados

Francisco Santiago-Ávila, um especialista em ética ambiental da Universidade de Wisconsin Madison.

Santiago-Ávila estuda os lobos cinzentos, cuja recuperação nas últimas décadas é uma das maiores histórias de sucesso da Lei Americana das Espécies Ameaçadas de Extinção. No entanto, essa mesma recuperação promoveu o regresso da caça ao lobo em alguns Estados. Quando o Estado do Alasca começou a permitir que os caçadores abatessem os lobos através do disparo de armas desde helicóptero, justificou esta acção como sendo necessária para a conservação das manadas de renas.

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Os lobos cinzentos americanos, como este retratado em Montana, foram retirados da lista de espécies ameaçadas de extinção em 2020. Mas o seu notável regresso desencadeou apelos à acção, uma vez que estes animais se alimentam de outros animais, incluindo alces e renas. Créditos imagem: rollingstone.com

Permitir o abate sem qualquer consideração pela forma como afecta o bem-estar do lobo é errado, argumenta Santiago-Ávila. Alerta:

Não há qualquer indicação de que o bem-estar de cada um dos lobos, que podem perder um membro da matilha, um parceiro, um tio – [seja] tido em conta nestas decisões”. Não existe um equilíbrio entre os interesses dos lobos e os interesses das pessoas”, conclui o especialista”.

A abordagem mais recente à ética da conservação, denominada de “conservação compassiva”, tentou que estas preocupações fossem tomadas em consideração. Os defensores desta perspectiva exortam os conservacionistas a encontrar formas de manter as populações estáveis e a evitar danos de espécies invasoras sem as matar.

Numa pequena ilha australiana, as raposas estão a ser mortas por estarem a comer pequenos pinguins raros – neste caso, o conservacionista compassivo integra cães de guarda para cuidar dos pinguins e afugentar as raposas

Emma Marris, da Revista Atlantic.

Mas mesmo a conservação compassiva não chega ao ponto daquilo que Graham e outros elementos do movimento do sofrimento dos animais selvagens estão a fazer. A sua questão não é que o mundo selvagem se possa dar muito bem sem que os humanos matem os animais vivos e sencientes. O problema, destacam estes activistas, é que mesmo que os humanos não fizessem nada, o mundo selvagem estaria cheio de brutalidade e sofrimento. “Parece-me que existe demasiada miséria no mundo”, escreveu Charles Darwin, numa carta ao botânico de Harvard, Asa Gray, em 1860, explicando a sua crise de fé, na sequência do desenvolvimento da teoria da selecção natural.

Não posso convencer-me de que um Deus benévolo e omnipotente teria criado os Ichneumonidæ [família de insectos parasitoides] com a intenção expressa de os alimentar dentro dos corpos vivos das lagartas, ou que um gato deveria brincar com ratos

Darwin, na mesma missiva.

O exemplo da Ichneumonidæ é esclarecedor. Uma espécie de vespa parasita, a Ichneumonidæ, que se espalha pelas vespas fêmeas plantando os seus ovos em casulos de lagartas. As larvas das vespas aguardam que chegue o seu tempo, mordiscando no seu hospedeiro. Os entomologistas David Wahl e Ian Gauld explicaram que: “Quando a lagarta está quase desenvolvida, a Ichneumonidæ consome a totalidade do seu interior e liberta-se da pele da lagarta, girando subsequentemente de um casulo sob, ou ao lado, dos restos larvares do seu hospedeiro”.

Este tipo de crueldade é mais a regra do que a excepção na natureza. Mas a ideia de que poderia apresentar-se como um problema ético para os seres humanos, tem sido marginal no debate contemporâneo sobre os direitos dos animais. Os críticos dos direitos dos animais têm usado o absurdo ostensivo de intervir, em nome dos animais selvagens, como argumento contra a protecção do bem-estar de quaisquer animais. “Os animais não são seres morais”, escreveu o filósofo conservador Roger Scruton, em 1998, na obra On Hunting. Se fossem, “os leões seriam assassinos, os cucos usurpadores, os ratos ladrões e as pegas assaltantes”. Se não estás disposto/a a prender Stuart Little por acusação de furto, argumentou Roger Scruton, também não te deves sentir minimamente culpado/a pelo teu frango McNuggets.

Porém, mesmo os filósofos interessados no sofrimento dos animais de criação têm descartado o sofrimento dos animais selvagens como sendo intratável, considerando que não vale a pena a preocupação, mesmo que os animais selvagens sofram muito na natureza. Intervir, por exemplo, administrando antibióticos a animais selvagens que sofrem de doenças bacterianas, poderia perturbar o equilíbrio da natureza e fazer mais mal do que bem, alegam esses filósofos. 

Muitos cientistas têm tido uma atitude que poderá ser considerada ainda mais arrogante. “A maioria dos comentadores das ciências biológicas assumem, simplesmente, sem oferecer qualquer justificação que a natureza não deve ser policiada”, observou o economista Tyler Cowen, num artigo de 2003 sobre o sofrimento dos animais selvagens.Através de conversas casuais, descobri que muitos dos que acreditam fervorosamente nos direitos dos animais rejeitam o policiamento fora de controlo, embora sem razões firmes, a não ser pensarem que não soa bem”, prosseguiu o economista.

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O consenso começou a mudar

Na última década, todavia, este consenso começou a mudar, sobretudo devido aos esforços de Oscar Horta. Filósofo da Universidade de Santiago de Compostela em Espanha, e cofundador do grupo Ética Animal, Horta passou a maior parte da sua carreira a tentar fazer com que colegas filósofos e os defensores dos animais rejeitassem as suas imagens da natureza como um idílio onde não podemos interferir.

O nosso primeiro erro, conforme destaca Horta frequentemente, é pensar principalmente nos animais selvagens adultos. Segundo o filósofo, imaginamos gazelas adultas felizes a vaguear livres na savana, com medo dos leões, claro, mas com muitas fontes de prazer na vida e entre as existências mais felizes que a natureza tem para oferecer. Muitos animais, como tartarugas, sapos e a maioria dos peixes, nascem em enormes magotes de centenas ou milhares de animais, dos quais apenas uma pequena fracção sobrevive. Isso significa que o membro típico dessas espécies vive uma vida breve, provavelmente lanhada por uma morte dolorosa; podendo concluir-se que viver o tempo suficiente para acasalar é um privilégio de poucos.

Um indivíduo típico está destinado à fome, à captura ou à luta sem sucesso pelo acasalamento. É difícil imaginar um bem-estar positivo para uma vida assim

Yew-Kwang Ng em 1995, um economista de Singapura e um dos primeiros investigadores a tentar estimar a extensão do sofrimento na natureza.

Este é o cerne do argumento de Horta: de que a maioria dos animais na natureza está sujeito a vidas horríveis.

Horta relata que, quando começou a defender esta posição por volta de 2008, “basicamente, eram apenas algumas pessoas e, por ‘algumas pessoas’, refiro-me a algumas pessoas em todo o mundo. É provável que eu pudesse contar, com os dedos de uma mão, o número de pessoas que conhecia que se preocupavam com este tópico”.

No entanto, o estudo do sofrimento dos animais selvagens, como disciplina, cresceu dramaticamente na década seguinte, desde o interesse dos animais de estimação de três ou quatro pessoas até ao foco de organizações inteiras. Horta fundou a Ética Animal para promover a ideia de “biologia do bem-estar”, um termo evidenciado por Yew-Kwang Ng, para uma ciência interdisciplinar do bem-estar animal. Uma geração mais jovem de filósofos, incluindo Cátia Faria, Eze Paez e Ole Martin Moen, abraçou o tema e transformou-o num subcampo em crescimento de ética animal.

Clare Palmer, uma proeminente especialista em ética ambiental, na Universidade Texas A&M, que tem argumentado contra um dever geral de ajudar os animais selvagens com o fundamento de que os animais selvagens não têm relações moralmente significativas com os humanos, diz que a preocupação com o sofrimento dos animais selvagens “explodiu” dentro da sua área desde que ela escreveu pela primeira vez sobre o tema em 2010. Tornou-se uma ferramenta pedagógica chave para si.

Estes argumentos parecem ser fortemente contra intuitivos para quase toda a gente, e fáceis de responder, dizendo ‘Que absurdo!’ (como fazem os meus alunos, sempre que estes argumentos surgem)”, escreve Palmer num e-mail. “E, no entanto, se seguirmos o raciocínio, são igualmente argumentos simples e poderosos, como o famoso argumento de [Peter] Singer para o alívio da pobreza global: ‘se está ao nosso alcance impedir que algo de mau aconteça, sem com isso sacrificar algo de importância moral comparável, devemos, moralmente, fazê-lo’”, prossegue Palmer.

O argumento de Horta, para salvar animais selvagens, tem um poder visceral semelhante ao de algumas pessoas. Faria, uma filósofa portuguesa que trabalha na Universidade do Minho e com as temáticas direitos dos animais e feminismo, chegou ao tema do animal selvagem em sofrimento, através da sua própria repulsa emocional pela brutalidade da natureza, um sentimento que não poderia ser mais estranho à ecologia e à conservação.

Ao longo da minha vida, sempre fiquei chocada com o horror dos acontecimentos naturais, em particular com os da predação e das catástrofes naturais. A natureza nunca foi um lugar de prazer para mim, nem sequer esteticamente. Na verdade, nunca consegui desligar-me do meu (nessa altura) repúdio intuitivo da natureza como lugar de conflito e sofrimento”.

Cátia Faria
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Um orangotango sumatrano selvagem alimenta-se de frutas no meio de pântanos de turfa e floresta densa na Indonésia. As florestas tropicais do país estão ameaçadas pela expansão agressiva das plantações de óleo de palma, pasta e papel – colocando os orangotangos, bem como os elefantes, ursos e cobras em grave perigo. Créditos imagem: natgeo.pt

Existem mais investigadores seniores na área que também abraçaram argumentos de intervenção para defender os animais selvagens. Martha Nussbaum, a célebre filósofa de moral e política da Universidade de Chicago, foi a primeira a entrar, acolhendo a ideia de intervenção para proteger as presas dos predadores, mesmo antes de Horta, na obra e movimento Frontiers of Justice [Fronteiras da Justiça], de 2006. Jeffrey McMahan, o actual titular da Cadeira de Filosofia Moral de Oxford White, foi ainda mais longe num artigo de opinião no New York Times, em 2010. Segundo McMahan, o problema moral da predação é tão grave que se teria de considerar a possibilidade de que as espécies carnívoras devessem ser extintas, acrescentando que tal seria feito se isso não provocar piores danos ecológicos.

Em 2015, os filósofos Will MacAskill e Amanda Askell foram ainda mais além argumentando que a morte de Cecil, o Leão, num incidente infame de caça furtiva poderia não ser uma coisa tão má. Cecil era, afinal de contas, um carnívoro – um sacana.

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Biologia do bem-estar

Se tudo isto te parece um absurdo, não fazendo grande sentido ético, não estás sozinho/a. Toda a história da conservação, bem como da ética ambiental que tem crescido à sua volta, empurra-nos para uma visão que aceita e até admite o sofrimento dos animais na natureza. Na pior das hipóteses, trata o sofrimento animal como um “bem triste”, nas palavras do filósofo ambientalista Holmes Rolston III – um facto trágico, mas inevitável da natureza.

, assinalou e questionou o jornalista alimentar e ambiental Michael Pollan.

É por isso que Graham e a Wild Animal Initiative querem concentrar mais o movimento de sofrimento dos animais selvagens na identificação de formas de intervenção específicas, desde o controlo da natalidade à gestão de doenças, para ajudar os animais selvagens.

Graham tem pouca paciência para voos filosóficos e fantasiosos como o de McMahan. Repudiou o artigo que defendia a morte de Cecil, o Leão. “Uma consideração que é realmente pouco vendida é o quanto os superpredadores (ou predadores alfa) mantêm a estabilidade do ecossistema”, declarou Graham. “Se o superpredador desaparecer e a gazelas tiverem um pico massivo na sua população e comerem todo alimento disponível, posteriormente terão de lidar com o stress resultante da competição pelos recursos e com o stress consequente da morte das suas crias, por estarem a morrer à fome”.

Qual deles é pior? Será que existe um meio termo que evite esses dois problemas? Não faço a menor ideia. É por isso que precisamos de dados.

Graham.

E o seu instituto está a trabalhar arduamente para conseguir isso. O objectivo é edificar a biologia do bem-estar como uma disciplina real e robusta.

O seu instituto está a tentar, por exemplo, fazer com que um projecto de investigação sobre pombos saia do papel e vá para o terreno. O principal problema para os pombos, em muitas cidades, é o mesmo que o das gazelas: são demasiados a competir pelo alimento que é insuficiente. As cidades têm tentado controlar as populações de pombos, de forma tradicional e não ética, envenenando-os. O Avitrol, por exemplo, é uma neurotoxina vendida às agências de controlo animal como um “agente químico aterrador” para dissuadir os pombos e outras aves.

Algumas cidades como Portland, ou Oregon, proibiram-no, não só porque as brutais convulsões e mortes que induz são desumanas, mas também porque fez com que as aves caíssem do céu para uma cidade aterrorizada, criando uma cena de puro terror, ao estilo de Alfred Hitchcock. 

A Wild Animal Initiative quer testar o OvoControl, uma espécie de isco contra a natalidade, e ver se consegue reduzir, de outro modo, a população de pombos. Se assim for, e de acordo com a proposta de investigação da WAI, “a quantidade de filhotes a crescer, sem a competição de irmãos, será maior, o que lhes permitirá obter mais alimento e cuidados dos pais”; por conseguinte, melhorando a vida dos pombos bebés. A esperança é que melhore o bem-estar da população dos pombos.

Existem outras iniciativas de investigação financiadas pela WAI que estão mais adiantadas. Davide Dominoni, ecologista da Universidade de Glasgow, está a utilizar o financiamento da WAI para estudar o efeito da luz nas áreas urbanas sobre o bem-estar dos animais selvagens, em particular sobre o bem-estar das corujas.

O seu objectivo é fixar etiquetas de rádio, ou até mesmo de dispositivos mais sofisticados, às corujas, a fim de as seguir e ver para onde vão e como evoluem, à medida que enfrentam mais ou menos luz nos seus habitats. Samniqueka Halsey, ecologista computacional e professora assistente na Universidade do Missouri, está a utilizar o financiamento da WAI para construir um modelo que avalia os efeitos de diferentes intervenções no bem-estar dos animais, com o objectivo de prevenir doenças em populações animais.

As doenças causam muita dor e as dores de partes inflamadas do corpo, ou a acção corrosiva de bactérias carnívoras, podem ser factores significativos que pioram a vida dos animais selvagens. Halsey referiu que, enquanto a maioria dos financiadores só está interessada nas doenças animais que causam problemas de saúde pública para os seres humanos, a WAI encorajou-a a olhar para o âmbito global das doenças.

Tudo isto é muito mais real do que especulações filosóficas sobre como livrar o mundo dos predadores.

Foi perguntado a Graham se se importava, moralmente, com os insectos. Sabemos muito pouco sobre que tipo de consciência é que os insectos têm, se é que têm alguma, mas há alguns sinais de que sentem dor. De forma honesta, Graham afirmou que na verdade não tinha a certeza.

Uma coisa que é preciso responder e aceitar é o que os animais têm sentimentos. Por exemplo, será que uma formiga pode ter um dia realmente bom ou um dia realmente mau? Em relação a esta pergunta, não sabemos a resposta”.

Graham.

Talvez tenhamos em breve.

Adaptado da página VOX

Traduzido e adaptado por Ana Luísa Pereira

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