Historicamente, a proteína na alimentação vegetariana é um tópico muito discutido, tanto no meio científico como entre a população em geral. E muita desinformação ainda é propagada sobre este tema, tanto ao nível da quantidade de proteína nos alimentos de origem vegetal, mas especialmente ao nível da qualidade destas proteínas. Para compreendermos esta última questão, da qualidade, é preciso primeiramente compreender a vertente da quantidade.
Fontes e quantidade de proteína nos alimentos de origem vegetal
Em relação à quantidade de proteína nos alimentos de origem animal, primeiramente é importante entender que, salvo raras exceções, todos os alimentos contêm proteína, inclusive os de origem vegetal3. Sim, todos! Incluindo alimentos como alface, batata, banana, etc. Mas claro que muitos não têm quantidades significativas e seria necessário comer quantidades abundantes e “irrealistas” para atingir as necessidades diárias. Por isso, é importante entender que alimentos são considerados fontes de proteína (e quais as melhores!).
As principais fontes proteicas de origem vegetal são:
- As leguminosas, como os feijões, lentilhas, grão-de-bico, soja, edamame, tremoços, ervilhas e suas respectivas massas;
- Os produtos processados à base de soja como o tofu, tempeh, soja texturizada, bebida e “iogurte” de soja;
- Alguns cereais e os seus derivados, como a aveia, os pães, as massas e o seitan;
- Os produtos análogos à carne à base de proteínas isoladas ou concentradas de soja, ervilha e/ou trigo;
- Proteínas isoladas em pó, que podem ser uma ferramenta prática opcional.
No entanto, apesar de alguns alimentos não apresentarem quantidades significativas de proteína em termos absolutos (g/100g), ou em relação ao seu valor energético (%), como é o caso de outros cereais e pseudo-cereais (arroz, bulgur, quinoa, couscous, etc.), mas também das sementes (linhaça, chia, girassol, abóbora, etc) e dos frutos oleaginosos (os chamados “frutos secos”, que incluem noz, amêndoa, pistachio, etc.), todos os alimentos contribuem para o aporte de proteína total na alimentação diária!
Figura 1 – Fontes proteicas de origem vegetal
E quais são as necessidades de ingestão proteica?
A necessidade de ingestão proteica pode ser entendida como a quantidade mínima necessária de ingestão de proteína para manter o equilíbrio de azoto e, assim, manter a massa proteica corporal, em indivíduos aparentemente saudáveis e em equilíbrio energético, pouco ativos fisicamente, de um determinado género ou em certa fase do ciclo de vida.4
As necessidades de ingestão proteica populacionais são definidas pela:
- Necessidade média estimada (EAR ou AR) – ingestão diária de proteína estimada para atender as necessidades de 50% da população-alvo.
- Ingestão dietética recomendada (RDA ou PRI) – ingestão estimada para atender às necessidades nutricionais de quase todos (97,5%) os indivíduos.
De acordo com organizações de referência (Food and Nutrition Board do Institute of Medicine, FAO, WHO, European Food Safety Authority, etc.), os valores de EAR (ou AR) e RDA (ou PRI) são, teoricamente, os mesmos, sendo 0,66 g e 0,8 g (ou 0,83 g) de proteína por kg de peso corporal, por dia (g/kg/dia)2,4,5 , respetivamente, dado terem por base o mesmo estudo de equilíbrio de azoto6.
No entanto, alguns autores defendem que este método apresenta limitações e que estes valores de RDA não representam a necessidade de ingestão proteica ótima7,9, especialmente em veganos10 e, por isso, sugerem uma ingestão de 1,2 g de proteína por kg e por dia, tendo em conta os valores encontrados em estudos que utilizam um método que pode ser visto como mais adequado: o indicador de oxidação de aminoácidos (IAAO)”.11,12
Outros trabalhos também sugerem uma ingestão superior à RDA, perante cenários catabólicos (cenários ou condições desfavoráveis para manutenção da massa muscular), como no caso do défice energético (1,3 g/kg/dia)14-17 e dos idosos (1,2 – 1,3 g/kg/dia)[Traylor, 2018; Tang, 2014; Rafii, 2015; Rafii, 2016].
Contudo, estes valores ainda não foram considerados e traduzidos em recomendações claras pelas organizações mais reconhecidas nesta matéria. Para indivíduos adultos, que praticam exercício físico de forma regular, que pretendem a otimização da hipertrofia e a manutenção da massa muscular, e para atletas de diferentes modalidades, as necessidades proteicas são muito superiores, variando de 1,2 g/kg/dia a 2,2 g/kg/dia18-21. No entanto, na maioria dos casos, não parece haver grandes benefícios com ingestões superiores a 1,6 g/kg/dia.18-22
Qualidade proteica das proteínas vegetais
Para se entender o conceito de qualidade proteica, é importante compreender a constituição das proteínas e o processo de digestão e absorção.
Digestão das proteínas e absorção de aminoácidos
As proteínas são constituídas por aminoácidos (AAs), que podem ser classificados como não-essenciais, sintetizados pelo corpo humano, e aminoácidos essenciais (AAEs), que precisam de ser obtidos pela alimentação.23 O organismo humano não é capaz de absorver as proteínas inteiras, por isso, precisam ser digeridas (“quebradas”) em AAs individuais ou pequenos peptídeos (pequenas cadeias de AAs), para então serem absorvidos no intestino 24.
Considerando que a proteína é a única fonte alimentar de AAEs, para além da ingestão total diária de proteína foram também definidas as necessidades de ingestão diária de cada AAE. 25
DIAAS: o método atual para determinação da qualidade proteica
A qualidade de uma proteína alimentar é definida pela capacidade dos AAEs que a constituem em atender às necessidades de AAEs do corpo humano.[2017, Marinangeli] Ao longo dos anos, muitos métodos de avaliação da qualidade proteica foram desenvolvidos e implementados, como por exemplo o Biological Value (BV) e o Protein digestibility corrected amino acid score (PDCAAS).27
O método de avaliação recomendado pela FAO, atualmente, o Digestible indispensable amino acid score (DIAAS), foi criado com o objetivo de rever e ultrapassar as limitações do método anterior, o PDCAAS.1,4,25
O DIAAS é obtido a partir de três componentes:25
- a composição de AAEs (mg/g);
- a digestibilidade dos AAEs (%);
- o padrão de referência dos AAEs (mg/g);
O DIAAS é, assim, calculado pela multiplicação da quantidade de cada um dos AAEs pelas suas respetivas digestibilidades, dividindo-se este valor pelo padrão de referência de cada AAEs.22,28 O menor valor encontrado é atribuído como sendo o DIAAS (expresso em %), sendo o AAEs referente ao menor DIAAS, definido como AAE limitante.22,38 (Figura 2)
Figura 2 – Equação de cálculo do DIAAS
Determinar a qualidade proteica das proteínas de origem vegetal
Em geral, valores mais baixos de digestibilidade e menores quantidades de AAEs são citados como desvantagens associadas às fontes proteicas de origem vegetal, quando comparadas individualmente às de origem animal.29,30
Contudo, é importante ter em consideração alguns pontos na determinação da qualidade das proteínas de origem vegetal, na interpretação das componentes e ao nível da utilização prática dos resultados.31
Composição de AAEs
Como já mencionado, todos os alimentos de origem vegetal têm proteína. Mas não só. Todos contêm os 9 AAEs (Figura 3).3
O consumo de alimentos de origem vegetal de diferentes grupos alimentares garante a complementaridade do perfil de AAs32 , e permite assegurar as necessidades. Os exemplos mais comuns são o AAE lisina, que está presente em baixas quantidades nos cereais e derivados, e a metionina, que se encontra presente nas leguminosas.3,31 No entanto, historicamente, estes dois grupos alimentares, e os seus respetivos derivados, são amplamente consumidos conjuntamente em diferentes contextos culturais.(28)
Apesar de não parecer ser estritamente necessário consumir fontes proteicas de origem vegetal, de diferentes grupos alimentares na mesma refeição33, estudos recentes demonstraram valores de biodisponibilidade (utilização pelo organismo) da metionina maiores quando a lentilha34 ou o grão-de-bico35 foram consumidos com arroz.
Assim, considerando a diversidade da alimentação humana, especialmente nos países onde a maioria da população beneficia de segurança alimentar e do acesso a vários grupos alimentares, seria irrealista pensar que alguém obteria toda a sua necessária proteína diária a partir de um único alimento.[2019;Gardner] Neste contexto, a avaliação e interpretação do perfil de aminoácidos de cada alimento individualmente não tem sentido prático.
A digestibilidade dos aminoácidos
A digestibilidade dos AAs de um alimento é um outro importante componente do cálculo do DIAAS. Em resumo, consiste numa medida que estima o nível real de absorção de AAs, presentes na proteína ingerida.28) (Figura 5)
Figura 5 – Digestibilidade ileal de alimentos de origem vegetal: Proteínas isoladas, tofu, seitan, bebida de soja, produtos análogos à carne, leguminosas variadas cozidas, cereais cozidos, cereais de pequeno-almoço, pão e pistachio
A avaliação da digestibilidade dos AAs de um alimento, na perspetiva da alimentação humana, deve considerar que praticamente todos os alimentos consumidos passam por algum tipo de processamento.
Muitos dos dados de digestibilidade derivam de alimentos crus (ao invés de cozidos/processados) ou na forma de proteínas isoladas ou concentradas (extraídas da sua matriz alimentar).(82,90-102) Isto deve-se ao fato da maioria dos dados existentes serem provenientes de alimentos utilizados para alimentação animal.(42,94-103) No entanto, reconhece-se que o processamento tem um impacto significativo na digestibilidade da proteína e dos AAs 36, devido aos efeitos do processamento na estrutura da proteína, no teor de fatores anti nutricionais (ANF), na acessibilidade das enzimas digestivas e, também, via interações com constituintes não-proteicos.37,38
Nota: ANF são inibidores das proteases, polissacarídeos não-amiláceos, polifenóis, fibras, lectinas, saponinas e fitatos.37
Para os alimentos de origem vegetal, o efeito do processamento é maioritariamente positivo. No caso de fontes proteicas vegetais em cru, a presença dos ANF implica valores de digestibilidade inferiores, consequentemente subestimando os valores de DIAAS, em relação à sua forma normalmente consumida (processada).36
Para as proteínas isoladas, já é o oposto, o processo de fracionamento aumenta a digestibilidade (a qualidade proteica) em relação ao alimento conforme normalmente é consumido29.
Figura 6 – Efeito do processamento na digestibilidade proteica dos alimentos de origem vegetal
Assim, é importante que sejam considerados valores de digestibilidade e, consequentemente de DIAAS, de alimentos na forma em que são comumente consumidos no nosso dia-a-dia, para que seja feita uma interpretação correta e não existam extrapolações equivocadas.
Utilização do DIAAS para fontes proteicas de origem vegetal
Em geral, os alimentos de origem animal, se comparados individualmente aos de origem vegetal, apresentam maiores valores de DIAAS No entanto, conforme exposto neste artigo, a utilização e interpretação do DIAAS deve considerar todo o contexto alimentar, ou seja, o consumo de alimentos de diferentes grupos alimentares ao longo do dia. Caso contrário, a análise de valores individuais pode levar a extrapolações equivocadas e irrealistas3,41.
Isto é, calcular o DIAAS para refeições completas, ou considerando a combinação de alimentos durante o dia, tem maior utilidade prática e é mais válido do que calculá-lo considerando individualmente cada alimento. (Figura 8)
Figura 7 – Cálculo do DIAAS para mistura de alimentos (refeições). Automaticamente é considerada uma ingestão proteica igual à EAR (0,66g/kg/dia)
Qualidade proteica na prática!
Para garantir que uma ingestão adequada de AAEs na alimentação, é importante:
- Garantir uma ingestão proteica adequada às necessidades de cada indivíduo;
- Conhecer as boas fontes de proteína vegetal;
- Consumir variados grupos alimentares diariamente, privilegiando o consumo de leguminosas;
- Se possível, incluir fontes proteicas processadas com boa qualidade proteica, como os derivados da soja;
- As proteínas isoladas em pó podem ser ferramentas práticas;
- Se aplicável, utilizar as técnicas caseiras para aumentar a digestibilidade proteica dos alimentos, como o remolho (colocar o alimento na água por algumas horas), cozedura adequada, germinação, etc.
Artigo da autoria de Lucas Oliveira (4273NE).
Notas adicionais:
Neste artigo, alimentação vegetariana refere-se à alimentação vegetariana estrita, composta exclusivamente por alimentos de origem vegetal.
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